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Não preciso nem dizer/
Tudo isso que eu lhe digo/
Mas é muito bom saber/
Que eu tenho um grande amigo.
Não preciso nem dizer/ Tudo isso que eu lhe digo/ Mas é muito bom saber/ Que eu tenho um grande amigo.| Foto: Reprodução/ Twitter

Sábado, fim da tarde. Como sempre, pego meus apetrechos e vou para a sacada observar as maritacas, ouvir música, pensar na vida, dar uma olhada nas ideias não-consumadas da semana, anotar novas ideias. E beber um uisquinho, porque ninguém é de ferro. Lá pelas tantas, ouço pelos fones acordes iniciais de “Amigo”, de Roberto e Erasmo Carlos. Sinto que vou ficar sentimental e não dá outra: fico sentimental.

“Você é meu amigo de fé, meu irmão camarada”, começa Robertão, que completou 80 anos semana passada e, sacanagem, nem me convidou para aquela aglomeraçãozinha clandestina básica na Urca. Como faz muito tempo que não ouço a música, presto atenção à letra que parece incrustada na memória.

Às vezes em certos momentos difíceis da vida
Em que precisamos de alguém pra ajudar na saída
A sua palavra de força, de fé e de carinho
Me dá a certeza de que eu nunca estive sozinho

Uma coisa leva a outra, o álcool começa a fazer efeito, e eis que, quando percebo, estou me lembrando da conversa recente que tive com Glenn Greenwald (publicada no domingo, mas realizada na quarta-feira). Esqueça o que ele disse sobre Vaza Jato, liberdade de expressão, Bolsonaro genocida ou outros pontos polêmicos. Atenha-se, ouvindo ao fundo o Roberto, à parte em que o jornalista mais odiado do Brasil (fora todos os outros) diz que não gosta que opiniões políticas interfiram na vida pessoal, nas amizades.

“Gosto de conversar com pessoas e ter pessoas na minha vida com opiniões diferentes, porque você aprende muito a respeito de como as pessoas pensam”, diz Greenwald. “Você realmente entende por que as pessoas pensam o que pensam. E, por fim, evita que você fique muito à vontade com suas ideias sobre o mundo. Quando você conversa com pessoas que veem as coisas de uma outra forma, você pode aprender muito e até mudar de ideia sobre algumas coisas. Por isso é importante procurar ter na vida pessoas com opiniões diferentes da sua”, conclui.

Isso, vindo do homem que quis implodir o sistema de vigilância do governo norte-americano e que quis acabar com a Lava Jato, me soa como o objetivo mais difícil do nosso tempo. A fantasia mais utópica da nossa sociedade. Sei de amigos que ainda são capazes de se sentar à mesa sem falar um “a” sobre política. Mas o próprio esforço para evitar um assunto que deveria surgir natural e desapaixonadamente revela a degradação da instituição Amizade.

Sempre que menciono essa dificuldade de conviver com pessoas diferentes, sou recebido com dois tipos de reação. Primeiro me mandam calar a boca e parar de mimimi. O que desobedeço. Depois alguém invariavelmente aparece para dizer que o amigo que se afasta por diferenças políticas nunca foi amigo de verdade. E como discordar de um lugar-comum tão bem construído como esse?

Mas amizades não são racionais e por isso a ideia de que o ex-amigo nunca foi amigo de verdade não consola. Não a mim, pelo menos. Sempre bate aquela pontinha de culpa, aquela sensação de que, se ao menos eu murchasse em silêncio, a amizade permaneceria inabalada. Nessas horas, sou tentado a pegar o telefone e perguntar ao ex-amigo por que minha visão de mundo lhe bota tanto medo. Por acaso sou desses que apontam o dedo e dizem a um subalterno: “Levem-no para o gulag?!”

E, no entanto, como eu queria um amigo para discordar e brindar agora mesmo com este single malt aqui (depois do expediente, claro). Em meus delírios, imagino uma espécie de faux ennemi rebatendo todos os meus argumentos, mas rindo das minhas piadas; me repreendendo por causa das frases hiperbólicas, mas sem levar o próprio exagero a sério; um pouco assustado com a presença desses pontos e vírgulas aí; e que me ligue à meia-noite para avisar que errei um porquê.

Alguém que eu pudesse mandar carinhosamente para aquele lugar, xingar de petista, bolsomínion ou isentão, ao sabor dos acontecimentos e só por graça, e depois abraçar para cantarmos fraternalmente, cada qual imitando a voz fanhosa do Rei:

Não preciso nem dizer
Tudo isso que eu lhe digo
Mas é muito bom saber
Que eu tenho um grande amigo.

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