
Ouça este conteúdo
Do jeito que as coisas estão, não sei mais em quem acreditar. Mas ouvi dizer por aí que, por causa das sanções norte-americanas, das denúncias de Eduardo Tagliaferro e de uns tropeços retóricos de Alexandre de Moraes, a anistia finalmente tem chance de virar realidade. Uhu! Antes de acender o pavio do chorão colorido, porém, vou beber um gole de espumante, calma, pera lá, só mais um pouquinho. E, agora sim, vou perguntar: a anistia vai pacificar o Brasil?
Calma, Paulo. Segura essa ansiedade. Uma coisa de cada vez. Não coloque a carroça na frente dos bois. Devagar com o andor que o santo é de barro. Etc e eu sei. Não se trata de ser afobado, muito menos pessimista. É que, pedindo desde já perdão pela constatação óbvia, olhe ao seu redor e me diga se não vivemos num estado permanente de animosidade. De ojeriza pelo outro. De hostilidade, de aversão, de antipatia, de malquerença, de repulsa. De raiva, pô!
O copo entornou
Sim, vivemos. O copo entornou. E não dá nem mais para botar a culpa na tal da polarização, aquela que nos tornava inimigos durante as campanhas eleitorais ou no auge dos escândalos políticos, mas que logo se dissipava na cordialidade cotidiana. Não! Agora é outra coisa. Um sentimento mais corrosivo. Antes um estado de ânimo passageiro, toma um copo d´água com açúcar, seu moço, hoje a raiva é um estilo de vida. Como se cada conversa, cada gesto, cada olhar fosse uma oportunidade para destruir o outro – senão ele me destrói.
E quem expõe o bumbum na janela percebe isso rapidamente. Qualquer palavra é interpretada como ataque ou traição. Lê-se rosnando o que foi escrito com um sorriso. Não há espaço para a dúvida, muito menos para a autodúvida. Reflexão? Sai pra lá! Nuance? Tá em falta. A cada tuíte, a cada post no Instagram, a cada react no TikTok, a cada mensagem de zap somos convocados a escolher um lado. E a odiar, odiar mesmo, odiar dicumforça, o outro. Num clima desses, como enxergar o próximo como o que ele é: um semelhante tão imperfeito quanto nós?
Regas diárias
Pois é em meio a esse clima de animosidade que discutimos a possibilidade, ou melhor, a necessidade de uma anistia ampla, geral e irrestrita que, se Deus quiser e ele há de querer, vai pacificar o Brasil. Anistia da qual, só para deixar claro, sou a favor. Sempre fui. Porque acredito que o futuro é uma planta exigente, que requer regas diárias de perdão para crescer frondosa e nos dar sombra e doces frutos.
Como ia dizendo, é nesse contexto de animosidade que se discute a anistia. Muitos a rejeitam como uma forma de impunidade, covardia e até traição à justiça. Eu, ao contrário, sou a favor. Não por cálculo político, mas por princípio: acredito que só há futuro se houver perdão. De um lado e do outro. Que uma sociedade que se alimenta de vingança está condenada. Serve para a política e para a vida. Duvida? Pergunte para a sua mulher.
Espíritos belicosos
A questão, no entanto, é outra: será que a anistia bastará para pacificar o Brasil? Porque uma lei dessas pode extinguir processos, arquivar investigações e até tornar Bolsonaro elegível. Mas seria desonesto de minha parte vir aqui dizer que a anistia ampla, geral e irrestrita conseguirá apagar ressentimentos. Lembrando que o clima de animosidade que vivemos hoje não se restringe ao mundo político e jurídico. Trata-se de uma guerra de memórias, de pesadelos, de desconfianças e de símbolos.
Ao contrário do que aconteceu em 1979, tenho a impressão de que a anistia, por si só, não desarmará os espíritos belicosos que se apossaram do Brasil. A esquerda continuará vendo a direita como uma ameaça. E a direita continuará vendo na esquerda a encarnação da corrupção. E isso não é algo que se resolva na canetada. Porque anistia de verdade é algo que se decreta em silêncio, no íntimo de cada um, e não em plenário.
Quer um drinque?
O que não quer dizer que uma anistia seja inútil. Claro que não! Esse tipo de leitura é maldade sua. A anistia pode ser um primeiro passo. Um gesto simbólico, um convite à pacificação real que um dia fará direita e esquerda se unirem num churrasco fraterno. Mas será preciso mais do que os votos dos deputados e dos senadores, sem falar na sanção presidencial e, mais importante ainda, na anuência do STF. Será preciso que cada um de nós, brasileiros, renunciemos ao prazer de humilhar o adversário. Que tal? E será preciso recuperar um tiquinho da confiança que tínhamos pelo outro. Confiança sem a qual os diferentes simplesmente não conseguem conviver. Não dá. É impossível.
Claro que não espero que isso aconteça de um dia para o outro. Não sou tão idiota assim, né? (Ou sou?). Por isso mesmo estou dizendo que o Brasil não será pacificado pela anistia, embora a anistia seja muito bem-vinda, sinta-se em casa, não repara a bagunça, quer um drinque? Não. Se vier, a pacificação virá quando aceitarmos que todos erramos e exageramos. E que todos temos algo a perdoar e algo a ser perdoado. Só assim, quem sabe, poderemos começar a imaginar o futuro.




