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Pesadelos sempre acabam. E, quando acabam, ficamos com aquela ridícula sensação de termos sofrido demais por algo que sabíamos ser passageiro.
Pesadelos sempre acabam. E, quando acabam, ficamos com aquela ridícula sensação de termos sofrido demais por algo que sabíamos ser passageiro.| Foto: Pixabay

Minha mulher diz que eu deveria investir em escrever textos animadores nessa época de pandemia. Textos que façam as pessoas rirem e terem alguma esperança em estoque para quando tudo isso passar. Eu acho a ideia ótima e já me animo. Pego meu caderninho e começo a anotar algumas ideias. Mas daí lembro que ninguém lê nada e que um dos efeitos colaterais do coronavírus é a copandemia de desesperança.

Desisto, mas não muito. Escrever é sina. Vou para o quarto, ligo o computador. E, enquanto espero a máquina já velha e cansada pegar no tranco, fico pensando no pesadelo que é estar vivendo uma pandemia que virou peste. Ontem mesmo fui dormir e o sono, como sempre, chegou rápido. Lá pelas quatro da manhã, contudo, tomado por uma vontade insuportável de ir ao banheiro, me levantei e, admirando a noite silenciosa enquanto bebia água no gargalo, para o desespero da minha mulher que roncava seu ronco miúdo, cogitei sair para saquear alguma farmácia e pegar todos os comprimidos para dormir necessários para uma noite que durasse pelo menos dois meses.

Não há nada de engraçado ou esperançoso nisso, dirá o leitor. Mas ele está enganado.

Porque pesadelos sempre acabam. E, quando acordamos de uma perseguição, da queda do trilhonésimo andar de um edifício em chamas ou (eu costumava sonhar muito com isso) de um carrasco que empunha um machado para decepar nossa cabeça, sempre nos achamos um tanto quanto ridículos diante daquele sofrimento que só existia na imaginação anárquica do sono profundo.

Eu mesmo outro dia acordei de um pesadelo motivado pelo filme de terror a que assistira na véspera. Algo a ver com pessoas que andavam no teto, falando de diabo e coisas do gênero. Daí entrava uma mãe-de-santo – e os ativistas politicamente corretos que me perdoem, mas mães-de-santo sempre me meteram medo. E a mãe-de-santo ficava lá, dançando e falando coisas ininteligíveis.

De dentro do pesadelo, comecei a gemer sabendo que o gemido ecoaria na realidade. Isso acontece com alguma frequência e talvez um psicanalista daqueles bem picaretas saiba explicar melhor. Mas o fato é que uma parte de mim sempre permanece atenta ao ridículo do pesadelo e, antes que eu me desespere, essa porção mais sábia começa a gemer, numa tentativa patética de me acordar ou, no mínimo, de fazer com que minha mulher me acorde, me libertando do sofrimento imaginário.

O mais comum é eu acordar sozinho mesmo. Com um grito. Um berro daqueles de acordar o vizinho (a mulher nem acorda mais, acostumada que está). Depois de uma olhada rápida nos arredores do quarto escuro, como que para ter certeza de que estou vivo e de que tudo aquilo não passou de um pesadelo, invariavelmente começo a rir. Pateta que sou.

A esperança que tenho a oferecer hoje, pois, é esta: um dia perceberemos como fomos ridículos ao dar ao coronavírus, à pandemia, à recessão e às intermináveis discussões nas redes sociais toda essa importância que demos. Riremos dos gráficos e da onipresente borrifada de álcool em gel como hoje rimos dos médicos que usavam aquelas máscaras com bicos cheios de ervas cheirosas durante a Peste Negra porque acreditavam que o problema todo se resumia ao fedor.

Diante do espelho, numa manhã qualquer de dezembro (não sei de que ano), riremos das muitas manifestações do nosso desespero. Da fome imaginada ali mesmo, no mercado, diante de uma prateleira cheia de queijos vindos do mundo inteiro. Do caos temido entre o farol vermelho e o verde. Da anarquia condominial que há de ser liderada por uma síndica riponga que, entre uma meditação e outra, perde tempo escrevendo éditos fascistas que alguém imaturo vandaliza com desenhos semiobscenos (eu).

E, nas animadas rodas de conversa à mesa de um bar, com bastante saliva e vírus cruzando inofensivamente os ares, riremos da desesperança própria e alheia e veremos o tenebroso futuro que projetávamos como aquilo que ele realmente foi: apenas um pesadelo. Passageiro. Daqueles que se espanta com um grito e que se comenta às gargalhadas na mesa farta do café da manhã.

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