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O controle politicamente correto na linguagem é sutil. Quando percebemos, estamos nos autocensurando.
O controle politicamente correto na linguagem é sutil. Quando percebemos, estamos nos autocensurando.| Foto: Reprodução

O campo de batalha da guerra cultural é a linguagem. E a parte mais evidente deste conflito são os termos diretamente relacionados às pautas políticas em voga. Não se pode, por exemplo, usar o termo “homossexualismo”, porque alguém inventou que a terminação “ismo” está associada à doença. O “comunismo” que o diga!

Da mesma forma, qualquer termo com conotação negativa que possa vir a ofender negros está sendo, aos poucos, abolido (!). E não adianta argumentar que a dicotomia luz/trevas é provavelmente até mais antiga do que o próprio alfabeto e está presente em culturas negras. Quem tem algum interesse psicológico ou político em se sentir ferido pelas palavras não está nem aí para a etimologia.

O que mais me incomoda nesse conflito lexical não são as incongruências dos ativistas. Nem o oportunismo de empresas como aquela loja moveleira toda cheia de consciência social que decidiu desempregar o criado-mudo, coitado. O que me incomoda não é nem mesmo o ridículo da hipersensibilidade. O que mais me incomoda é perceber como introjetamos o cerceamento e nos autocensuramos.

Sempre que vou escrever coisas como “humor negro” ou “lado negro”, por exemplo, hesito por um instante. Ou dois. Ou dez. Apago, reescrevo, reapago. E, se reescrevo, me sinto um reacionário birrento. Atordoado, procuro sinônimos que raramente combinam. E, se acabo mesmo usando essas expressões "proibidas", não é sem um tiquinho de culpa por um crime que não cometi. Culpa essa que logo dá lugar a um orgulho bobo, uma sensação minúscula de ser herói do próprio texto. Como se aquela palavra específica fosse uma declaração de independência, um libelo pela liberdade a me igualar a um Soljnetskin ou coisa parecida.

Novas formas de controle

Para quem lida diariamente com a palavra, é interessante perceber como termos novos surgem e desaparecem ao sabor dos humores políticos. Veja o caso do coronavírus. De repente, todo mundo parou de usar o termo, substituindo por algo mais preciso, científico e supostamente sem qualquer contaminação geopolítica: Covid-19. O que, em termos criativos, é uma pena. Chamar de sinovírus ou kung flu certamente seria mais divertido.

Aliás, vale a pena notar como essa censura, autoimposta ou motivada pela coerção da manada sempre enraivecida, aos poucos foi dando mais peso a absolutamente tudo o que se registra no papel. Qualquer verbozinho de ligação mal colocado que antes era motivo de riso hoje é capaz de gerar confusão. Adjetivos, então, nem pensar! Os advérbios de modo, coitados, antes coadjuvantes absolutos, agora são todos indícios de uma enorme teoria da conspiração.

E há toda uma lexicografia burocrática cujo objetivo nada mais é do que transformar como pensamos e como enxergamos a realidade. Ao contrário do policiamento vocabular identitário, contudo, essa forma de controlar a linguagem é bem mais sutil. Quase imperceptível.

Outro dia mesmo, ao escrever sobre os privilégios dos funcionários públicos, me peguei usando o termo da moda: servidor público. Pode parecer e é um detalhe menor, mas que faz toda a diferença. Não por acaso, os funcionários das empresas privadas também deixaram de ser “empregados” para se transformarem em “colaboradores”. Assim, a linguagem vai mudando não só as relações de trabalho como também a forma como nos vemos no mundo. Afinal, quem colabora não está tão sujeito a ordens quanto quem é empregado.

Deficiência não é adjetivo

Tentativas mais incisivas de controle da linguagem têm um quê de ridículo que nos leva a, num primeiro momento, desprezá-las como zombaria. Um exemplo disso é fazer referência aos “buracos negros” como “buracos afrodescentes”. Lentamente, contudo, esses exageros acabam absorvidos e normalizados e, quando percebemos, estamos nos controlando mesmo para não escrever, falar ou pensar usando termos “proibidos”.

A campanha mais recente desse tipo vem dos burocratas de Florianópolis. A iniciativa deles, intitulada “Deficiência não é adjetivo”, pretende abolir ditados populares e expressões capazes de ofender os deficientes físicos de todos os tipos. Seriam ultrajantes, por exemplo, os ditados “o pior cego é aquele que não quer ver” ou “em terra de cego quem tem um olho é rei”. Até o simpático “fica dando uma de joão-sem-braço” virou ofensa.

Minha surpresa maior nessa campanha ficou por conta da expressão “estou down”. O burocrata florianopolitano bem-intencionado, empenhado em sua cruzada por construir um mundo supostamente melhor por meio do controle da linguagem, não se deu conta de que o “down” da expressão nada tem a ver com a “Síndrome de Down”. O primeiro significa “pra baixo”, “deprimido”; o segundo é uma referência ao médico John Langdon Haydon Down, que identificou a trissomia 21.

O detalhe que talvez tenha escapado aos idealizadores da campanha é que “deficiência” realmente não é adjetivo. É substantivo.

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