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O título para este texto me ocorreu diante de uma pia cheia de louça suja. É que minha mulher é daquelas que, para fritar um ovo, usa todos os utensílios da casa. Sabe como? Pois bem. Estava eu alegre e contente lavando a louça e soltando toda a potência da minha voz afinodivergente para cantar “My Way”, dando uma de Frank Sinatra do Pilarzinho. Foi aí que me ocorreu a possibilidade de a letra “ir contra” os ensinamentos católicos.
Driblar é pecado?
Calma! Antes que você pule no meu pescoço ou vista em mim uma camisa-de-força (tamanho M, por favor), quero esclarecer que não estou aqui para dizer se um católico pode ou não ouvir Frank Sinatra. Pelo contrário! O título é justamente uma brincadeira com essa tendência insuportável da chamada bolha católica. Essa coisa de “católico pode usar tênis Nike?” ou “católico pode ler Stephen King?”. Sim, tem isso! Ora, se teve gente questionando, a sério, se driblar é pecado à luz de São Tomás de Aquino...
Melô do Xandão
De volta à música, porém. Se você parar para pensar, “My Way” é um baita elogio da soberba. O cara está lá, à beira da morte, e enche a boca para falar que fez e aconteceu e se impôs e planejou cada passo e trilhou seu caminho na vida à sua maneira. E que nem se arrepende direito. Sinceramente, um tremendo de um escroque que instrumentaliza as pessoas, que passa por cima delas, que faz o que lhe é conveniente e que se acha acima do bem e do mal. Você conhece o tipo.
Maaaaaaai uêêêi
Aqui vou abrir um parágrafo para lhe pedir desculpas, porque sei que existe uma possibilidade remotíssima de eu ter estragado a música para você. Mas, se serve de consolo, ao prestar atenção à letra estraguei a música para mim também. Mas só um tiquinho. Nada que me impeça de entoá-la para ferir ouvidos alheios depois de três doses de uísque. Ai dirit maaaaaaai uêêêi. Mas onde é que eu estava mesmo?
Ousadia e alegria
Ah, sim! O fato de a música ser egoísta, hedonista e soberba não quer dizer que você, católico, não possa ouvir “My Way” e talvez até dar seu showzinho no karaokê, para desespero do meu amigo Claudio Shikida. Afinal, se tem uma coisa que aprendi nesta vida é que poder a gente pode fazer tudo, tudo mesmo. Mas nem tudo nos convém. E quem vai dizer o que nos convém não é o Estado nem o Centro Dom Bosco, e sim nossa consciência e o Espírito Santo – para quem nele acredita e eu acredito. Esclarecida, pois, essa parte mais ousada (ui!) do texto, vamos à humilde proposta de uma ascese cultural.
Escolher bem, escolher menos
É que, em meio a toda a interminável discussão sobre a formação do imaginário, me deparei recentemente com essa ideia que não me pareceu de todo má: a de escolher com mais cuidado o que a gente consome na música, no cinema e na literatura. Escolher com mais cuidado e principalmente escolher menos. Afinal, a gente não precisa conhecer e ter uma opinião sobre todas as músicas de todas as bandas, nem assistir a todas as séries e filmes de todos os serviços de streaming, muito menos ler todos os livros de todos os autores.
Ascese cultural
Em resumo, praticar a ascese cultural é cuidar daquilo que você absorve com os olhos e ouvidos, sim, mas também com a alma. E que pode muito bem ser o niilismo cínico de um Seinfeld ou a experiência de conversão de um Johnny Cash. Ou a beleza intraduzível de um Caravaggio ou o egoísmo de “My Way” ou “Non, Je Ne Regrette Rien”. Mas lembre-se: trata-se sempre de uma escolha e uma escolha que você faz em liberdade. Nada de obrigatoriedades nem censuras, hein.