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melancia
Compreendamos, aqui, mais essa fragilidade humana: sempre foi, é e será grande, enorme, gigantesca a tentação de falar aquilo que o público quer ouvir.| Foto: Pixabay

Fui chamado de “melancia”. O insulto é novidade para mim, acostumado a ser chamado de gado, isentão ou comunista. Tanto é assim que tenho que perguntar ao ofensor o que significa o xingamento. Estupidez suprema, a minha! “Melancia é verde e amarela por fora e vermelha por dentro”, me explica o agressor. "Aaaaaaaaaaah!", respondo, rindo amarelo. Por um instante, me lembro de certa vez em que achei que “salta-pocinhas” era elogio. Para você ver.

Está curioso para saber por que fui chamado de melancia? Eu também. Parece que tem a ver com a minha percepção da realidade política, que para um verdadeiro patriota é insuportavelmente falha, para não dizer "burra". Sou, pois, “vermelho por dentro” porque não acredito na força político-militar de Jair Bolsonaro para dar um golpe/contragolpe ou para usar o já mítico Artigo 142. Ao que tudo indica, essa minha postura incrédula, derrotista e pessimista é prejudicial ao movimento. O que me torna imediatamente um infiltrado que tem por objetivo enfraquecer a revolução. Desculpe?

Imagino do que me chamaria o ofensor se soubesse que, ao longo desta semana, várias vezes ensaiei escrever com todas as letras: não haverá um golpe de Estado no Brasil. Ou contragolpe, como queiram. Ao menos não por parte de Bolsonaro e seus apoiadores. Digo, haverá alguma balbúrdia. Na segunda-feira (12), data da diplomação do ex-presidiário eleito, é bem capaz de haver gritos e ranger de dentes. Mas um golpe? Gê, ó, ele, pê, é? Consulto um e outro, leio isso e aquilo, observo com atenção todos os sinais. Não consigo enxergar nenhum indício dessa revolução aí e me sinto obrigado a perguntar mais uma vez: desculpe?

Mas repare você que estou confessando ter desistido da empreitada de dizer taxativamente que não, não haverá um golpe, não. Porque lá bem no fundinho da mente sempre resta uma nanoduvidazinha. Afinal, vivemos no Brasil, terra de samba, pandeiro e dramas. Vai que o Exército está mesmo convocando revolucionários por meio do Twitter, como “provam” vários prints compartilhados nos grupos patriotas, né? Vai que os índios invadem o STF. Vai que o Sol atualmente em Sagitário forma algum aspecto sinistro com Plutão e Netuno. Vai quê.

O melancia que ousasse escrever uma insanidade dessas e fosse pego de calças curtas pelo improvável passaria uma vergonha maior do que um jornalista que, em 1939, no Volksanzeiger, anunciasse com todas as letras e aquelas palavras quilométricas do alemão que a Europa estava prestes a entrar num longo ciclo de paz. “Eu te disse, seu melancia!”, imagino o agressor falando, rindo e babando Schadenfreude. Não sem um tiquinho de razão.

Cisne verde-oliva

É esse temor diante da possibilidade (ainda que ínfima) de concretização do improvável que me faz segurar a língua até o dia 1º de janeiro. Mas chegue mais perto e dê só uma olhadinha aqui. Veja como o ser humano é interessante. Enquanto uns receiam, outros fomentam o clima de incerteza política, atiçando o espírito revolucionário dos brasileiros que, compreensivamente, não aceitam a dura realidade de que seremos governados por Lula e seus cúmplices pelos próximos quatro anos. E espero que fique só nisso.

Alguns sopram essa brasa por pura perversidade, mas esses não me interessam. Prefiro me ater aos que agem como animadores de torcida porque morrem de medo que a pecha de “melancia” pegue. Ou porque temem perder o respeito de uma audiência que ainda nutre esperanças legítimas por uma solução mágica. Compreendamos, aqui, mais essa fragilidade humana: sempre foi, é e será grande, enorme, gigantesca a tentação de falar aquilo que o público quer ouvir. Ou vocês não se lembram dos intermináveis “Lula preso amanhã” do tempo em que a prisão de um corrupto ainda era apenas uma esperança mais ou menos palpável?

Mais do que seduzir um público ávido por emocionantes reviravoltas que selariam a vitória do bem contra o mal ou da liberdade contra a escravidão, o importante é ser fiel à realidade observável. Por mais tenebrosa que ela pareça. O importante é ser honesto. Mesmo correndo o risco de desagradar quem se apega a qualquer videozinho de um jipe militar cruzando a rua como um sinal claro & inequívoco de que o candidato preferido do TSE não subirá a rampa. Mesmo sendo xingado de "melancia". E mesmo correndo o risco de, amanhã ou depois, levar uma rasteira do cisne negro. Ou seria verde-oliva esse cisne?

Melancia ou não, o que tira meu sono no momento tem a ver com o que chamo grandiloquentemente de A Grande Decepção: o que essas pessoas todas farão ao terem de se deparar não só com a porção humana dos seus heróis e mitos, mas sobretudo com a derrota – tenha sido ela fraudulenta ou não. E mais: o que eu farei com todo esse meu cinismo se alguma coisa, qualquer coisa, acontecer mesmo para impedir a coroação de Lula III.

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