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Orgulhosa e perfeitinha para uns, cheia de arestas para outros, a democracia não pode estar imune a críticas.
Orgulhosa e perfeitinha para uns, cheia de arestas para outros, a democracia não pode estar imune a críticas.| Foto: Pixabay

Criticar a democracia é um esporte que venho praticando há algum tempo. Sou, contudo, atleta amador. Isto é, não pretendo escrever nenhum tratado sobre os defeitos da democracia. Tampouco sou jogador de várzea como Daniel Silveira, o deputado preso que, de acordo com o entendimento inquestionável do ministro Alexandre de Moraes, saía dando botinadas na canela de instituições inatacáveis como o Supremo Tribunal Federal.

Nesse esporte que, mesmo em sua versão mais nobre, educada, ponderada, tranquila e zen, está prestes a cair na clandestinidade, sou um perna-de-pau de inspirações as mais variadas. A começar pelo Jules Rimet da crítica à democracia, Tocqueville, que acompanhou a Revolução Americana temendo ver o recém-nascido governo do povo, pelo povo e para o povo transformado numa ditadura da maioria.

Mas me inspirou também a frase atribuída a Winston Churchill, segundo a qual “a democracia é a pior forma de governo, à exceção de todas as demais”. Sendo bem sincero, nunca engoli direito essa frase. Ela soa como a democracia da primeira metade do século XX tivesse sido o apogeu da Civilização. (E talvez tenha sido). Como se ela fosse imutável e eterna. (Talvez seja). E como se simplesmente tivéssemos desistido de apertar um ou outro parafuso da democracia que temos em mãos, mesmo diante do ruído do motor e de sinais evidentes de um vazamento de óleo. (Talvez tenhamos desistido mesmo).

De qualquer forma, foi a vontade meio infantil de confrontar o clichê do titio Churchill o que me levou, desde jovem, a questionar a superioridade, ou melhor, a suposta infalibilidade de uma forma de governo que nos legou aberrações como Fernando Collor e Lula, sem falar em deputados, senadores, vereadores e membros do Poder Incriticável que eu não sou nem louco de nomear aqui.

Não que eu tenha uma alternativa à democracia. O objetivo das minhas críticas, proferidas em palanques imaginários e em comícios imaginários de mim para mim, nunca foi esse. Até porque tenho louça para lavar. Se fosse, eu estaria agora na academia, redigindo uma tediosa nota de rodapé. Não, essa coisa de ser revolucionário não é a minha. Nunca foi. Como disse, nesse esporte sou atleta amador. Daqueles que ficam na lateral torcendo para a bola nunca chegar até ele. Deus me livre dar um dibre. Deus me livre marcar um gol.

Didi para Mané para Didi para Pelé

As pessoas de bem, aliás, não celebram os gols neste esporte. Golpes e as consequentes tiranias são vistos com desprezo pela torcida. Que, no entanto, tende a admirar as garrinchices daqueles que se perguntam, só pelo prazer de se perguntar, se democracia é mesmo “a pior forma de governo, à exceção de todas as demais”. Pelo simples prazer de pensar, digo.

E é para isso que servem jogadores como Simone Weil, Murray Rothbard e, mais recentemente, já nos acréscimos do século, por assim dizer, Bryan Caplan.

A primeira escreveu um belo livro em que propõe nada menos do que o fim dos partidos políticos. Mas, por favor, fica só entre a gente. Porque, se o Alexandre de Moraes fica sabendo, é capaz de mandar prender a autora e este jornalista mui subversivo aqui. Em “Pela Supressão dos Partidos Políticos”, Weil critica sobretudo a escravização do espírito humano pelo coletivismo rasteiro próprio das agremiações políticas. Se fosse viva, contudo, talvez Weil, depois de uma passadinha pelas redes sociais e depois de se deparar com as hashtags #BolsonaroTemRazão e #Dilmonaro, estendesse sua crítica à democracia representativa como um todo.

Rothbard é mais complicado. Enquanto libertário, digamos que ele não seja fã de nenhuma forma de governo que não uma espécie de anarquia regulada pelas forças mercado. Alguém mais afoito pode dizer até mesmo que as ideias rothbardianas chegam bem perto dos impropérios proferidos por Daniel Silveira. Em “Anatomia do Estado”, por exemplo, Rothbard explica tintim por tintim para que serve uma Suprema Corte: para legitimar o poder de coerção do Estado. Como se vê, nem o velho Murray conseguiu prever que, um dia, num país sulamericano abençoado por Deus e bonito por natureza, a democracia seria subvertida a tal ponto que os legitimadores da coerção se tornassem agentes coercitivos.

Bryan Caplan, por sua vez, e já familiarizado com os aspectos mais contemporâneos da democracia, reforça a imagem da dita-cuja como um mero concurso de popularidade entre pessoas que defendem ideias economicamente equivocadas, mas que fazem uma cosquinha na alma do povão. O povo que não entende, por exemplo, como os preços das commodities são formados. Nem as consequências da emissão de moeda. E por aí vai.

O que mais gosto em Caplan é vê-lo caminhando sempre na beiradinha do abismo, quase propondo um governo controlado por uma espécie de rei-filósofo economicamente esclarecido, capaz de passar por cima da vontade popular simplesmente porque é o certo a fazer. Mas sem nunca, em nenhum momento, se jogar nesse abismo. Para o alívio de você-sabe-quem.

Por vias indiretas, e antes que eu me esqueça, Alan Jacobs, um dos meus preferidos, usa os estudos literários (quem diria que poesia serviria para uma coisa dessas, hein?) para também rir da prepotência com que o Ocidente trata os defeitos e contradições inerentes à democracia. Como se eles pudessem ser resolvidos à moda Alexandre de Moraes. Como se prisão ou essa forma contemporânea de degredo que é ordenar a derrubada das redes sociais de um pobre-diabo fossem capazes de eliminar a sensação incômoda de que há algo de errado (talvez até de muito errado) com a forma de escolhermos nossos líderes.

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