Foi necessário um computador ultrapotente para reproduzir uma imagem aproximada dos habitantes dos umbigoloides sobre o teclado.| Foto: Bigstock
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Ontem, no meio de uma (mais uma!) discussão política, senti uma coceirinha no meu centro de gravidade e tive um estalo. Quis abandonar a conversa, me livrar das roupas e da sanidade e sair por aí gritando o óbvio que ulula, mas ninguém ouve: há toda uma civilização se desenvolvendo no meu umbigo.

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É uma civilização de gente louca (no bom sentido) e que não está nem aí para o que acontece para além da abóbada umbilical. Para os umbigoloides que ali nascem, crescem, se reproduzem e morrem, meu umbigo é o Universo, e não apenas uma parte repugnante e até pornográfica do corpo de um ser pensante no planeta Terra.

Me desfiz de microfones e câmeras, joguei longe o celular e o computador. De umbigo virado para o sol imaginário que brilhava para além das nuvens carregadas de chuva e tristeza, e munido de umas pinças a laser que achei sob o sofá, entre bolinhas e ratinhos da Catota, peguei lá da civilização um umbigoloide. E me pus a conversar com ele.

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Assim que me viu, o umbigoloide foi logo apontando o dedo para minha cara e dizendo que os leitores odiariam essa minha história. “Coisa idiota, isso de umbigoloide. Onde já se viu?”, disse ele, em seguida enumerando os temas sobre os quais eu podia escrever. Fiquei ali, ouvindo o pito da criaturinha, e me perguntando como era possível que os moradores do meu umbigo soubessem tanta coisa da política brasileira.

Com um peteleco, usei meus poderes de semideus para jogar o umbigoloide longe. Manuseando novamente as pinças, saquei do umbigo outra criaturinha, dessa ver uma fêmea da espécie ainda não classificada no sistema de Lineu. Ela usava um vestido azul de bolinhas brancas. Ao se ver escolhida para falar comigo, o pobre-coitado que ela tinha por deus, o serzinho se sentou. “Sou toda ouvidos”, disse ela.

Sírios flamejantes

E eu lhe falei. Disse que estava com saudade de escrever o que chamo de “bobagens profundas”. Como da vez em que, diante de um erro ortográfico, escrevi toda uma história na qual um caixão estava ladeado por sírios flamejantes. Ela riu e naquela risada eu vi meu propósito de vida realizado. “Você não tem mais ideias desse tipo?”, me perguntou a umbigoloide. Não respondi, mas queria ter dito que tenho, só que ninguém mais se interessa por outra coisa que não política, política, política. E política.

O papo estava bom. Dei a ela uns farelos de pão e umas gotículas de cerveja. E falei, falei, falei. Contei a ela minhas agruras profissionais. Confidenciei uns medos que não revelo a mais ninguém. Li para ela uns trechos de Nelson Rodrigues que me fazem rir com a mão na barriga, tipo desenho animado. “No meu mundo, a gente chama isso de terremoto”, disse a umbigoloide, me olhando com certa reprovação.

Até que vi a boquinha da umbigoloide se abrir num bocejinho. O sol já nascia lá no Japão. “Está ficando tarde...”, disse, sugerindo que era hora de ela voltar para seu mundo e eu para o meu. A umbigoloide se levantou, olhou bem para a minha cara, fez que ia dizer alguma coisa, mas não disse. Peguei as pinças a laser para devolvê-la cuidadosamente àquele lugar inóspito, mas a umbigoloide disse que não precisava, que ela preferia mergulhar e sentir o ventinho na cara. “Tão bom”.

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Antes de se lançar no vazio cercado de banha por todos os lados, porém, ela se virou para mim e, com um ar quase professoral, me perguntou que livro eu estava lendo no momento. Prolixo como sempre nessas ocasiões, expliquei que minhas leituras são caóticas, que alterno entre “O Idiota”, “Triste Fim de Policarpo Quaresma”, uma coletânea de contos de Lygia Fagundes Telles e outra de crônicas do Nelson Rodrigues. “Só isso? Tem certeza?”, perguntou ela. E eu pensei em correr até o quarto para ver quais outros títulos se acumulavam no criado-mudo. Temendo lançá-la no vazio, contudo, me contive.

“Ah, sim. Também estou relendo o Ivan Ilitch”, disse. Ela meneou a cabeça e por um instante sua fisionomia grave ressuscitou a lembrança de uma professora severa que tive na sétima série. “Há um motivo para a história de Ivan Ilitch caber em tão poucas páginas”, disse ela (a umbigoloide, não a professora). Ficamos ali em silêncio, num suspense que pareceu durar séculos, mas que não passou de uns nanossegundos. Sem entender para onde aquela conversa rumava, dei o empurrãozinho que faltava para que ela caísse nas profundezas do meu umbigo.