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Assisti a “Homem com H”, cinebiografia de Ney Matogrosso. Assisti e agora vou escrever a respeito. Caramba. Me sinto como um daqueles heróis de antigamente, dando início a uma grande aventura e tendo de atravessar uma assustadora floresta de dedos em riste e olhos raivosos, me acusando de preconceito, homofobia, recalque, inveja e até mau gosto. Será que chegarei vivo ao ponto final? Veremos.
Antes, porém, quero dizer que sou fã de Ney Matogrosso. Nem tanto do cantor solo, e mais do membro da banda Secos & Molhados. É, eu sei. Desculpa. Tem mau gosto para tudo neste mundo. Logo eu. Etc. Mas é que realmente curto a voz e os arranjos e aquela pretensão toda. E até assistir a esse filme também admirava Ney Matogrosso por sua vocação para a transgressão, sem jamais se sujeitar a quaisquer discursos totalitários.
Sexo, sexo, sexo e mais sexo
Admirava. Porque a cena final de “Homem com H” dá a atender que o artista transgressor virou um burguesão acomodado ao sucesso e à aceitação geral. Para alguém que fez carreira chocando a sociedade, é uma decadência e tanto. Uma confissão de derrota. Aliás, ceder a própria história para uma biopic chapa-branca é confissão de derrota para qualquer artista. Que tristeza.
Ao filme, porém. Sem falar nos diálogos constrangedores, no roteiro formulaico e na interpretação caricatural de um nada franciscano Jesuíta Barbosa (pescou? pescou?), “Homem com H” é explícito no que deveria ser implícito e raso no que deveria ser profundo. O filme prefere apelar ao sexo, sexo, sexo e mais [BOCEJO] sexo, ignorando duas questões que praticamente imploram para serem exploradas (sem sucesso): o significado de vocação artística e a relação entre Ney Matogrosso e o pai.
Vocação
O pai será visto pela militância identitária como o conservador malvado. Uma pena. Porque, não sei se voluntariamente ou não (mas acho que não), o roteirista e diretor Esmir Filho optou por mostrar Antônio Matogrosso Pereira como o que ele foi: pai. Admiravelmente pai. Pai que brigava, mas se preocupava. Pai que brigava, mas não abandonava. Pai que, na velhice, travou uma luta interna para aceitar o filho e as escolhas de vida do filho. Pai imperfeito, como todos nós, mas essencialmente pai. Essa parte do filme é bem boa. Digo, boa. Digo, boazinha.
Sobre a vocação artística de Ney Matogrosso, já disse e repito: o filme ignora o tema completamente. Talvez até por um deficiência de formação de seus realizadores, incapazes de perceber que é na concretização transgressora dessa vocação que está o maior mérito (e a cruz!) do biografado. Por isso, Ney Matogrosso acabou reduzido a um personagem ressentido e escravizado pela sexualidade. Tudo ali é personagem. Como se a bela voz, o figurino ousado e os movimentos impudicos tivessem engolido, se apossado do ser humano. (Ufa, acho que sobrevivi).