Com a morte da rainha Elizabeth II já não dá mais para negar aquilo de que todos desconfiam desde 2001: o século XX é passado.| Foto:
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Outro dia morreu o Jô Soares. Foi como se tivesse morrido um amigo. Na correria do dia-a-dia, contudo, fui deixando a homenagem para depois e depois e depois e, quando vi, o texto tinha caído no poço das intenções perdidas. Mas ficou a sensação de que não era apenas a morte de uma pessoa que divertiu e, no meu caso, ensinou. Parecia a morte de algo maior. De um tempo.

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Semana passada, morreu Gorbachev. Nesse caso, senti como se tivesse morrido uma estátua. Ou um personagem de enciclopédia. Aquele cara com a mancha na testa, com o qual comparavam meu pai e que aparecia o tempo todo no telejornal. Por acaso, também fui obrigado a me lembrar da morte de um amigo que teve o privilégio de entrevistar Gorbachev. Foi assim, tangencialmente, que também sofri a morte não só de uma estátua ou personagem de enciclopédia. Novamente era um tempo que morria.

As sensações difusas ganharam força com a morte da rainha Elizabeth II. Já agora é possível definir melhor esse “um tempo” que soltou o último suspiro. É o século XX que se vai. E, com ele, duas guerras que – graças a Deus – não vivi, tragédias que não sofri, revoluções que não enfrentei, o pouso na Lua que não acompanhei pela TV. E e as últimas gerações a grafarem o século com algarismos romanos.

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Cem anos de dramas eloquentes dos quais aproveitei apenas duas décadas e uns quebrados. Durante as quais vi as duas potencias da Guerra Fria se unirem para salvar duas baleias; o Muro de Berlim cair; a União Soviética voltar a ser a Rússia velha de guerra; Romário fazer aquele gol de cabeça contra a Suécia; e mais um punhado de grandes eventos históricos dos quais não me lembro no momento.

Isso sem falar nos eventos da, digamos, história íntima. Todos concentrados entre 1977 e 2000. Primeiros passos, primeiras letras, primeiro beijo. Crises existenciais de adolescente, draminhas acadêmicos sem nenhuma relevância no presente. E, já nos estertores do século, o mindinho do pé mergulhado na idade adulta. Se bem que no ano 2000 nem barba eu tinha direito.

Com o século XX (ou 20, para os mais jovens), morre também a hegemonia cultural norte-americana no Ocidente. E não me escapa a ironia de eu ter me dado conta disso por causa da morte de uma monarca britânica. De certa forma, morre todo tipo de informação centralizada. Assim, morrem também as celebridades absolutas e os ícones culturais. Morre a música que aprendi a ouvir. Morre (e aqui vocês me perdoem um pessimismo que, reconheço, não combina nem comigo nem com o sábado) o que restava da sensação de ser um indivíduo cercado por uma sociedade, e não uma sociedade sufocando um indivíduo.

Me reconheço, assim, um homem do meu tempo, que é um tempo passado. Um século passado. É a essa preteritude que recorro quando preciso me revelar “antenado” ao presente a fim de vislumbrar o futuro. E você, leitor atento, deve ter percebido que o “antenado” aí denuncia não apenas a idade, mas também a antiguidade de quem escreve. O século XX foi o de semear. Agora já estou no meio da colheita. Pelo menos há fartura!

Dizer que o século XX fará falta seria absurdo. Assim como não faria sentido algum dizê-lo insubstituível. Pelo contrário. Com seus cabelos coloridos, alargadores nas orelhas, sexo fluído e ultraniilismo, o século XXI já se apresentou para cumprir as funções de tempo presente – e para tanto escolheu o nome de século 21. Dizem que, ao contrário das tragédias e dos dramas muito humanos que marcara seu antecessor, o novo tempo-rei quer ser reconhecido pelo triunfo derradeiro da técnica sobre a imperfeição dos tais Homo sapiens.

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Só nos resta esperar que tenha algum juízo, o novo soberano. E, se calhar, algum senso de humor. De minha parte miniminiminiminúscula, rezo para que o novo século ao menos tenha noção da própria finitude - que infelizmente não terei o prazer de testemunhar. Rezo para que este século termine não com um estrondo nem com um gemido, e sim com um suspiro de quem sabe ter cumprido seu papel na Eternidade.

Infográficos Gazeta do Povo[Clique para ampliar]