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Diogo Mainardi está lançando um novo livro: “Meus Mortos: um autorretrato”. Trata-se de um graphic novel em que ele usa a vida e obra do pintor Ticiano para falar sobre si e sobre o nada – o que, para Mainardi, é a mesma coisa. Se o livro é bom e eu o recomendo? Não sei e sim. Não sei porque não sei mesmo, ainda estou tentando descobrir. E sim porque a gente precisa urgentemente sair das redes sociais e se desbrutalizar um pouco.
Reconheço, contudo, a improbabilidade de você ter entrado aqui para saber mais sobre o livro, sobre Ticiano ou até mesmo sobre Diogo Mainardi. O mais provável é que você esteja interessado apenas nas nádegas da figura trágica que tanto o alegrou com as crônicas antipetistas na “Veja” – e que tanto o decepcionou com o antibolsonarismo psicótico dos últimos anos. Uma pena, porque “Meus Mortos” é muito mais do que isso. Assim como o que Diogo Mainardi tem a dizer vai muito além das nádegas que ele expõe na última imagem do livro.
Cadáver insepulto
Pena, sim. Mas faz sentido. Porque “Meus Mortos” é, em essência, um livro que tenta (um tanto quanto pateticamente) acertar as contas com um mundo que, para Diogo Mainardi, é decadente, não, péra, já morreu, pior!, já está fedendo – e nós aqui, obrigados a conviver com o cadáver insepulto. Da mesma forma que se relaciona mal com a morte, num curto intervalo de tempo, do pai, da mãe e do irmão, Diogo Mainardi se revela incapaz de aceitar que o mundo ao qual ele estava acostumado simplesmente acabou.
O curioso é que, ao retratar a brutalização do homem contemporâneo e o desaparecimento da aristocracia, inclusive como um ideal, sem falar no inegável poder de sedução da barbárie que lentamente envolve todos os aspectos da vida, Diogo Mainardi parece não perceber que não há como fugir dessa realidade. Uma realidade que, ao artista, cabe expressar com compaixão (e beleza); ou então chafurdar no orgulho de quem se considera superior a tudo e todos que o rodeiam. Não é.
Decadência, pessimismo, niilismo
De fato. Se houve um tempo em que as elites tiveram aspirações elevadas, esse tempo acabou, já era, bau-bau. Mas, caramba!, a gente é tão pequeno diante desses movimentos de massa. Das eras. Do espírito do tempo. E, no mais, me parece que essa visão meramente decadentista, pessimista e deploravelmente niilista combina mais com estudos sociológicos e menos com aquilo que tornava Ticiano, Rubens e Velásquez admiráveis: a exploração íntima da alma humana.
Ao ignorar essa dimensão e se colocar na posição de julgador do mundo que o rodeia, um mundo que sem dúvida o decepciona pela falta de aspirações que fossem além das coisas mundanas (como a política), Diogo Mainardi se reduz a um escritor também ele decadente, escrevendo num idioma bárbaro e para um público uga-buga. E o que mais me chama a atenção: Mainardi faz isso explorando algumas das obras de arte mais belas que o ser humano já criou (com a ajuda da Graça, claro), e em meio a um cenário que muitos consideram um bairro do Paraíso na terra, Veneza.
Amor
Por fim, em se falando de morte, glória mundana e decadência, há que se falar também do amor – uma faceta (ou melhor, a faceta) da existência assustadoramente ignorada em “Meus Mortos”. Neste ponto, sou obrigado a reconhecer minha limitação para admirar a provocação do graphic novel de Mainardi. Não entendo. Realmente não entendo como alguém pode ser capaz de se expor, de se mostrar vulnerável e, aqui e ali, bem sutilmente mesmo, flertar com o reconhecimento de sua condição trágica... sem falar no amor.
Amor que, para além da decadência que nos rodeia, das querelas políticas, do medo enlouquecedor da morte causado pela pandemia de Covid e da estúpida glória mundana que insistimos em buscar, ainda paira sobre este Vale de Lágrimas que, aos trancos e barrancos, atravessamos. O problema é que, para absorver e retransmitir esse amor, é preciso abandonar o ensimesmamento que, é nítido, aprisiona e tortura o artista. A ponto de fazê-lo expor as nádegas, como se a provocação vulgar fosse o que de melhor ele tem a oferecer ao mundo. Te garanto, Diogo: não é.




