O Abaporu é feio. Feio de doer. Mais feio do que indigestão de torresmo. Mas a decadência é tanta que este olhar pode mudar.| Foto: Reprodução
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O Abaporu é feio. Feio de doer. Mais feio do que indigestão de torresmo. Apesar da feiúra (com acento até o fim do texto), ou talvez por causa dela, o Abaporu se consagrou como o quadro-símbolo da arte moderna brasileira. Essa que está completando cem anos mais gagá do que nunca. Ele, o quadro, é tão famoso e reconhecível quanto aquelas coisas de Romero Britto. A diferença é que quem gosta do Abaporu não tem muita vergonha de confessar isso.

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Ultimamente, isto é, nos últimos 30 minutos desde que comecei a escrever este texto e abri uma aba do navegador com uma reprodução do Abaporu, ando até gostando do quadro pintado por Tarsila do Amaral em 1928 e que em 1995 teve o bom senso de se exilar em Buenos Aires. Se o Abaporu ainda estivesse no Brasil, já teria virado cinzas a serem varridas por Marcia Tiburi no romance autobiográfico “A Faxina do Meu Desterro”. [Uma piada que vai precisar de nota de rodapé* para ser compreendida daqui a dois dias, mas não quis desperdiçar].

Como dizia, nos últimos minutos tenho até gostado do Abaporu. Tá, gostar talvez seja uma palavra um pouco forte. Digamos que eu tenha olhado para o quadro quase com interesse, percebendo nele utilidades que nunca antes me chamaram a atenção. Por falar em olhar para o quadro, já reparou que todo mundo que se depara com a imagem do Abaporu – até as crianças – espreme os olhos? Diante dessa constatação, um iconoclasta (ainda existem?) que estivesse à solta por aí, dando bandeira, talvez dissesse que é uma reação instintiva de nojo. Como se o quadro ferisse o olhar. E não?

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Ao estilo debochado (que muitos confundem com “lúdico”) do Abaporu, diria que o quadro compensa a falta de beleza com uma ou mais funções práticas. Talvez como tauba de tiro ao álvaro. Ou ilustração de elefantíase em livro médico. Sem falar nas óbvias estampas de meias e toalhas de praia vendidas no calçadão de Copacabana. Aliás, já repararam que, de Van Gogh a Romero Britto, o objetivo de toda arte moderna/contemporânea é se transformar em estampa de capa de almofada em sofá de gente “sensível”?

Outra função do Abaporu é como “instrumento reconhecedor de chatos”. E aqui uso uma definição menos condescendente e mais ampla de “chato” – na qual, evidentemente, não me enquadro (sem trocadilho). Se, diante do Abaporu (ou, mais provável, de uma reprodução do quadro), a pessoa começar a falar sobre a triste realidade antropofágica da caatinga em contraposição à alma pura do transilvícola brasileiro ao sol, fique atento. Talvez você esteja diante de um chato, subtipo perigoso. Se a pessoa disser que Tarsila do Amaral foi uma pintora, desenhista e tradutora que nasceu em Capivari no dia 1º. de setembro de 1896, etc., etc., etc., cuidado! Você pode estar no meio de um plágio de uma cena de Woody Allen. Agora, se diante do quadro a pessoa começar a chorar, saia correndo! É cilada, Bino!

Reflexões sobre a feiúra

Falando um pouco mais sério, o Abaporu tem a grande utilidade de suscitar boas discussões sobre a feiúra. Uma palavra que insisto em escrever com acento, o corretor insiste em dizer que não tem acento e, sinceramente, vou continuar escrevendo com acento – porque posso e porque um dos legados da Semana de 22 foi permitir que, em alguns momentos, o estilo e a teimosia do autor se sobrepusessem aos burocráticos Acordos Ortográficos. Aliás, ouso dizer que, sem o acento, a feiura ficou ainda mais feia.

O padre Antônio Vieira era um crítico da beleza vil, sem pretensões de transcendência e que apela ao hedonismo do espectador, sem jamais nem tentar alcançar a alma dele. “As formosuras mortais no primeiro dia agradam, no segundo enfastiam: são livros que, uma vez lidos, não têm mais que ler”, escreveu o padre, antevendo com uma precisão incrível o tédio que hoje toma conta de qualquer pessoa que, diante do catálogo da Netflix, se pergunta “o que é que tem pra mim ver hoje?”.

Já a posição de Clarice Lispector parece combinar mais não só com o Abaporu, mas também com quase toda a arte contemporânea: “A feiúra é o meu estandarte de guerra. Eu amo o feio com um amor de igual para igual”, escreveu a eterna entediada Clarice. Tenho certeza de que agora mesmo deve ter algum artista militante da feiúra tatuando essa frase no cóccix.

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No cenário decadente que vivemos, porém, o Abaporu tem essa outra serventia que descobri agorinha há pouco: a de rejeitarmos a decadência que nos cerca e, com algum esforço, admirarmos (sim, admirarmos!) a arte moderna por seus resquícios de beleza, resquícios que a própria Tarsila, se viva fosse, lutaria para ver eliminados do Abaporu. Que é feio, sim, mais feio que hipopótamo fazendo careta. Mas não a ponto de ser o quadro mais feio do mundo, como dizia Millôr Fernandes no tempo em que o Abaporu podia ser analisado em comparação às obras de Vermeer ou Rembrandt. A julgar pela concorrência atual, é bem capaz de hoje em dia o Abaporu, com sua simplicidade, cores e narrativa ingênua, ser mesmo um dos quadros mais bonitos do mundo.

* Referência a Marcia Tiburi, segunda intelectual preferida do petismo que, em fevereiro de 2022, reclamou de estar fazendo faxina em seu apartamento de 27m2 em Paris, onde ela estaria “exilada”.
Infográficos Gazeta do Povo[Clique para ampliar]