Detalhe do quadro Ressurreição, de Caravaggio.| Foto: Reprodução/ Wikipedia
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Ainda em março de 2020, escrevi que o coronavírus (nome que a gente usava para se referir também à doença, por mais errado que fosse) era também ideológico. E que por isso havia muita gente feliz com a pandemia. Depois, isso ficou mais claro com a declaração da atriz Jane Fonda, que disse que o coronavírus era um presente dos Céus para a esquerda. E não é que foi (está sendo) mesmo?

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Muita água passou e ainda vai passar por debaixo dessa ponte feita de modelos matemáticos, gráficos, declarações estapafúrdias, lockdowns, falências e cadáveres. E, num futuro que espero próximo, poderemos avaliar melhor os impactos políticos de uma pandemia que, curiosamente, parece afetar mais o Ocidente do que o Oriente. Sem falar da esquecida África.

Neste texto, contudo, quero aproveitar a Páscoa para falar sobre outra dimensão da pandemia. Uma dimensão geralmente ignorada pela imprensa ocupada com mortômetros, com a incompetência dos políticos (uns mais do que os outros) e com as “aglomerações clandestinas”. Uma dimensão que dá até vergonha de analisar, de tão obcecados que estamos com a laicidade e as consequências muito palpáveis, muito materiais, muito mundanas da Covid.

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Estou me referindo (você já deve ter desconfiado pelo título) à dimensão espiritual.

Vergonha de ter fé

Tive a ideia para este texto ao ler “Beyond Order”, de Jordan Peterson, e ficar francamente incomodado com a, digamos, timidez religiosa dele. Logo no começo do livro, Peterson vai citar a Bíblia e praticamente pede desculpas ao leitor por isso. E usa o velho argumento dos gnósticos, segundo o qual os Evangelhos são “apenas um livro”, isto é, uma coleção de mitos semelhantes à Ilíada e Odisseia.

A relutância de Jordan Peterson em assumir a religiosidade é compreensível. Entre acadêmicos de quaisquer áreas, se assumir religioso, e ainda por cima cristão, é um crime de lesa-Iluminismo. A partir do momento em que você cita um versículo bíblico, é como se seu discurso estivesse contaminado por superstições e mágicas que não merecem ser levadas a sério. Você vira imediatamente um fanático que, ousadia das ousadias, reza e, se duvidar, até acredita em milagres.

Em outras palavras, você se torna um herege nessa igreja consagrada ao ateísmo e que tem como principal profeta Nietzsche, aquele que atestou, com uma sabedoria infeliz, a morte de Deus.

Na pandemia, a dimensão espiritual foi e está sendo esmagada, em primeiro lugar, por essa relutância dos cientistas, intelectuais e até jornalistas de se assumirem como cristãos e de, consequentemente, adotarem uma postura cristã em relação à Covid-19 e tudo o que a cerca. Qual é essa postura? Não sei. Não sou teólogo e longe de mim querer ensinar o padre a rezar a Missa. Mas me parece que a submissão ao cientificismo, a supressão do livre-arbítrio e a exaltação do medo não condizem muito com aqueles que se declaram fiéis.

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(O que não quer dizer que o fiel, por ser fiel, deva sair por aí lambendo corrimãos ou espalhando perdigotos virulentos. Não me obrigue, por favor, a escrever aquele ridículo disclaimer sobre a importância de manter os cuidados básicos).

Até onde vai nossa fé?

Além da “timidez religiosa” de Jordan Peterson, outra coisa que me moveu a escrever este texto foi meu próprio medo. Ou melhor, pânico. Na noite anterior a uma viagem rápida de férias, não conseguia dormir. O coração acelerado bombeava sangue para um cérebro que insistia em projetar imagens de sofrimento e finitude. Em minha imaginação naquele momento enferma, era como se eu caminhasse voluntariamente para o cadafalso. Como se eu fizesse da vida (da vida!) instrumento do meu suicídio.

De volta a Curitiba, já mais calmo e sadio (ou pelo menos assintomático) mesmo depois de pegar aviões lotados em aeroportos idem, de rodar em Ubers com as janelas fechadas, de comer em restaurantes razoavelmente movimentados e de me aglomerar ilegalmente (foi sem querer) na porta de uma escola, foi a vez de prestar contas à minha própria consciência e me perguntar até onde ia minha fé. Isto é, até que ponto acredito mesmo em Deus e numa Sabedoria infinita e inalcançável, se me deixo abalar tanto por uma doença e por todo o noticiário que a orbita?

Para variar, estou sendo duro demais comigo mesmo. Tenho essa tendência a me fustigar. O fato é que é difícil sustentar a esperança (palavra que uso aqui como sinônimo de fé) quando se está exposto a uma torrente de notícias ruins que às vezes tem a ver com a doença e às vezes tem a ver com a ética da doença.

E aqui não me refiro apenas à imprensa da qual faço parte. À boca pequena, pelo zap, redes sociais ou mesmo naquela conversa rápida com um desconhecido na panificadora, as notícias que nos chegam, verdadeiras ou não, são só de desgraças. Hoje em dia todo mundo conhece alguém muito saudável, menino, precisa de ver, fazia esporte e tudo, e morreu assim, de um dia para outro.

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Tudo parece nos dizer que a vida é um Vale de Lágrimas que a gente atravessa sem objetivo algum. Que uma hora você está aí, todo pimpão escrevendo para a Gazeta do Povo, e no outro não está mais. Que tudo acaba por acaso ou, pior, por crueldade do destino, dos governantes, quando não do próprio Deus. Que as orações são tempo perdido, superstição de gente simplória, quando não obscurantista. Que a única saída é a submissão à inteligência de meia dúzia de Iluminados que estão em contato direto com a Sabedoria Finita, Mas Palpável, e que sabem o que é melhor para cada um de nós.

Ressurreição

Em meio à destruição real ou simbólica causada pela pandemia de Covid-19 e pelo fetiche da peste que infelizmente a acompanha, há oportunidades para renovarmos nossa fé – para quem ainda a tem, lógico. Nos últimos dias, tenho exercitado dois “músculos espirituais” que insistem em atrofiar: o da resignação e da gratidão.

Sobre o primeiro já falei bastante por aqui e não vou me alongar para não dar margem àqueles que insistem em confundir resignação com conformismo e covardia. Só vou dizer que há algo de diabolicamente estúpido em dar murros em ponta de faca. Não que me falte vontade de dizer umas poucas e boas para as pessoas que, apesar da vacinação, daqui a três meses estarão fechando os “serviços não-essenciais” mais uma vez. Pode escrever e cobrar.

Falo bastante aqui sobre gratidão também. Mas vou aproveitar o dia em que se celebra a Ressurreição de Cristo para reforçar. Eu estou vivo, você está vivo. O Sol nasce todos os dias no leste e se põe no oeste. Estamos cercados por pequenos atos de amor. Cotidianamente, há milagres que não saem nos jornais. E, se por um lado 3 milhões de pessoas lamentavelmente perderam a vida para a doença, por outro 73 milhões a enfrentaram e se recuperaram.

Lave as mãos, use a incômoda, duvidosamente útil e fatídica máscara, isole-se se puder e achar necessário. Mas tente também não perder nunca a esperança como norte. Porque há muito mais entre as notícias macabras e a sede de controle dos homens do que desconfia nossa fragilíssima fé.

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Infográficos Gazeta do Povo[Clique para ampliar]
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