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Polzonoff

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Transformando em crônica heroica o noticiário de cada dia.

Paródia literária

O STF nu

STF HOMEM NU FERNANDO SABINO
Cláudio Marzo na adaptação de 1977 para a crônica "O Homem Nu", de Fernando Sabino. (Foto: Reprodução)

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Ao acordar, o STF disse para sua esposa submissa, a Constituição:

— Escuta, minha filha: hoje é dia de pagar a prestação de todos abusos cometidos nos últimos anos. Vem aí o povo com a conta, na certa. Mas acontece que eu estava ocupado demais censurando, prendendo, contando dinheiro e assistindo à final da Libertadores e estou sem argumento.

— Explique isso ao povo — ponderou a mulher.

— Não gosto dessas coisas. Dá um ar de transparência e até de justiça e de responsabilidade, gosto de fazer o que bem entender, de decidir e tá decidido. Escuta: quando o povo chegar a gente fica bem quieto, não faz barulho, deixa ele pensar que não tem ninguém. Deixa ele reclamar nas redes sociais até cansar — depois eu vejo o que faço com ele.

Pouco depois, tendo ficado nu, ele foi ao banheiro para tomar um banho, mas a Constituição já se trancara lá dentro. Enquanto esperava, o STF resolveu fazer um café. Pôs a água a ferver e abriu a porta de serviço para pegar uma passagem num jatinho particular para assistir a um evento esportivo qualquer. Ou um contrato com o banco Master. Ou uma liminar que limita os poderes do Senado. Ou um convite para o Gilmarpalooza. Ou uma decisão flagrantemente ilegal. Ou qualquer coisa assim. Como estivesse completamente nu, olhou com cautela para um lado e para outro antes de arriscar-se a dar dois passos até o embrulhinho deixado ali pelo advogado de uma empresa com ação no Supremo. Ainda era muito cedo, nem a imprensa apareceria por ali. Mal seus dedos, porém, tocaram o embrulho, a porta atrás de si fechou-se com estrondo, impulsionada pelo vento.

Aterrorizado, o STF se precipitou até a campainha e, depois de tocá-la, ficou à espera, olhando ansiosamente ao redor. Ouviu lá dentro o ruído da água do chuveiro interromper-se de súbito, mas ninguém veio abrir. Na certa a Constituição pensava que era o povo vindo cobrar a conta pelos abusos supremos. O STF bateu na porta com o nó dos dedos:

— Constituição! Abre aí, Constituição. Sou eu, o STF — chamou, em voz baixa.

Quanto mais ele batia, mais silêncio fazia lá dentro.

Enquanto isso, ouvia lá embaixo a porta do elevador fechar-se, viu o ponteiro subir lentamente os andares... Desta vez, só podia ser o povo!

Não era. Refugiado no lanço da escada entre os andares, esperou que o elevador parasse, e voltou para a porta de seu apartamento, sempre a segurar nas mãos nervosas o embrulho com o escândalo a esconder-lhe as vergonhas:

— Constituição, por favor! Sou eu, o STF!

Desta vez não teve tempo de insistir: ouviu passos na escada, lentos, regulares, vindos lá de baixo... Tomado de pânico, olhou ao redor, fazendo uma pirueta, e assim despido, embrulho na mão, parecia executar um ballet grotesco e mal-ensaiado. Os passos na escada se aproximavam, e o STF sem onde se esconder. Correu para o elevador, apertou o botão. Foi o tempo de abrir a porta e entrar, e a imprensa toda passava, vagarosa, encetando a subida de mais um lanço de escada. Ele respirou aliviado, enxugando o suor da testa com o embrulho. Mas eis que a porta interna do elevador se fecha e ele começa a descer.

— Ah, isso é que não! — diz o STF nu, sobressaltado.

E agora? Alguém lá embaixo abriria a porta do elevador e daria com ele ali, expondo sua constrangedora nudez, podia mesmo ser uma Corte Suprema de um país realmente democrático... O STF percebeu, desorientado, que estava sendo levado cada vez para instâncias mais inferiores, começava a viver um verdadeiro pesadelo de Kafka, instaurava-se naquele momento o mais autentico e desvairado Regime do Terror!

— Isso é que não — repetiu o STF, furioso.

Agarrou-se à porta do elevador e abriu-a com força entre os andares, obrigando-o a parar. Respirou fundo, fechando os olhos, para ter a momentânea ilusão de que sonhava. Depois experimentou apertar o botão do seu andar. Lá embaixo, continuavam a chamar o elevador. Antes de mais nada: “Emergência: liminar, censura & sigilo”. Muito bem. E agora? Iria subir ou descer? Com cautela, assinou a liminar, determinou a censura, decretou o sigilo, e largou a porta, enquanto insistia em fazer o elevador subir. O elevador subiu.

— Constituição! Abre esta porta! — gritava, desta vez esmurrando a porta, já sem se importar com o devido processo legal nem nada. (E quando é que ele se importou?) Ouviu que outra porta se abria atrás de si. Voltou-se, acuado, apoiando o traseiro no batente e tentando inutilmente cobrir suas muitas vergonhas. Era a Democracia no apartamento vizinho:

— Bom dia, minha senhora — disse o STF, confuso. — imagine que eu...

A Democracia, estarrecida, atirou os braços para cima, soltou um grito:

— Valha-me Deus! O STF está nu!

E correu ao telefone para chamar o Senado:

— O STF quebrou o decoro aqui na porta!

Outros vizinhos, ouvindo a gritaria, vieram ver o que se passava:

— É um golpe do Judiciário!

— Olha, que vergonha ter um STF desses no mesmo andar que o nosso!!

O que será que a Constituição pensa de uma safadeza dessas?

Por falar nela, a Constituição, esposa humilhada do infeliz, abriu finalmente a porta para ver o que era. O STF entrou como um foguete e vestiu a toga precipitadamente sem nem se lembrar do banho. Poucos minutos depois, restabelecida a calma lá fora, bateram na porta!

— Deve ser o Senado. Deixa comigo que com ele eu me entendo — disse o STF, ainda ofegante, indo abrir.

Não era: era o povo.

Este texto é uma paródia da crônica (alguns consideram conto) “O Homem Nu”, de Fernando Sabino. A crônica foi adaptada para o cinema em 1977. Como eles conseguiram transformar um texto tão pequeno num longa-metragem eu não sei. Nunca vi o filme. Mantive praticamente todo o vocabulário e o estilo, como se percebe pela colocação dos pronomes e pelas trocas súbitas de tempos verbais. O que eu, sinceramente e com todo respeito ao finado Sabino, considero horríveis. Mas quem sou eu para achar alguma coisa, não é mesmo? Espero que vocês tenham gostado.

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