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Discussão sobre a vachina: as redes sociais fazem você acreditar que sua indignação será ouvida. No mundo real, porém, a obediência é a regra.
Discussão sobre a vachina: as redes sociais fazem você acreditar que sua indignação será ouvida. No mundo real, porém, a obediência é a regra.| Foto: Pixabay

Faz algum tempo que estou para escrever sobre aquele simulacro de documentário chamado “Dilema das Redes”, que fala sobre a ética ou falta de ética desse simulacro de vida a que dão o nome de “redes sociais”. Mas o filme é tão ruim e o moralismo com um quê de totalitário é tão explícito que fui deixando para lá.

Até que veio o fim de semana e tive o questionável prazer de, ao longo de dois dias, acompanhar a discussão acalorada sobre a obrigatoriedade da vacina chinesa (carinhosamente apelidada de "vachina") contra a Covid-19. Quem defende que a vacina seja obrigatória, como propôs o governador de São Paulo, João Dória, vê na oposição à medida um sinal evidente de estupidez, idiotia, falta de caráter, incapacidade cognitiva, terraplanismo, etc. Quem é contra a vacina obrigatória vê nos defensores da medida um sinal evidente de estupidez, idiotia, falta de caráter, incapacidade cognitiva, terraplanismo, etc.

O debate, neste caso, é um jogo de soma zero que não tem nenhuma conexão com o mundo real. E é aqui que entra um dos poucos aspectos positivos, embora mal explorado, do documentário “Dilema das Redes”. Estou falando da busca, ou melhor, do garimpo que empreendemos todos os dias atrás de uma frase, um meme ou até de um texto como este (pejorativamente chamado de “textão”), capaz de apaziguar nossa conturbada “alma política”.

Em outras palavras, algo que nos traga consolo (uma coisa que este texto, infelizmente, não provê). Que use aspas (nem que sejam inventadas), títulos de livros e autores consagrados que deem substância a uma sensação que é anterior ao primeiro parágrafo, anterior até mesmo ao título: a de que estamos intuitivamente com a razão e nossos adversários, que consideramos inimigos, são indubitavelmente mancomunados num plano intrincado qualquer para nos destruir.

O problema é que o documentário diz que isso é culpa dos algoritmos inventados por homens maus e gananciosos, quando nossa escravidão é evidentemente voluntária. Prova disso é, justamente, a discussão bizantina sobre a obrigatoriedade da vacina contra a Covid-19. Como a pandemia deixou claro até aqui, nossa opinião não vai influenciar em nada o rumo das medidas de combate à doença. O que gente como João Dória, Átila Iamarino ou Márcia Huçulak, secretária da saúde de Curitiba, acha que deve ser feito será feito, e independe de lógica e muito menos da nossa vontade, da nossa indignação, de nossos gritos por liberdade.

No mundo real, aquele que pega ônibus lotado, que hesita em comprar um iogurtezinho a fim de não estourar o orçamento, que trabalha sem pausa para a metafísica, que acha que Mises é plural de “miss” e que Marx é apenas o novo reforço do Flamengo, o que impera é a passividade algo sábia (resignação) de quem não pode correr o risco de perder o pouco que tem. Em outras palavras, independentemente da discordância e até da indignação, a verdade é que, se um doutor qualquer decidir que a vacina será obrigatória e um político qualquer endossar a medida com sua assinatura, a maioria das pessoas tomará a vacina, sem se importar com questões como segurança, eficácia e liberdade.

Se você duvida, dê uma olha olhada nos muitos decretos de lockdown e as muitas leis estaduais e municipais, aprovadas na surdina pelo vereador Zé da Padaria ou o deputado estadual Pedro Pimentinha, que obrigam o uso de máscaras, sob pena de advertência, multa, prisão, palmada no bumbum, sei lá. A despeito do esperneio de uns e outros, eu incluído, estamos todos usando a incômoda máscara, sacrificando uma liberdade individual em troca da sensação (que, no fundo, sabemos ser falsa) de estarmos criando um ambiente mais seguro.

Com a vacina, se vacina houver e venha ela de onde vier, será a mesma coisa. Constatação que revela um aspecto realmente diabólico do mundo virtual que “Dilema da Redes” convenientemente não aborda, isto é, a forma como as redes sociais fomentam a ilusão de que somos livres e temos uma voz (preferencialmente cheia de pontos de exclamação e emojis, quando não de palavrões) realmente capaz de influenciar os rumos da história, quando não de conter o ímpeto totalitário dos nossos governantes.

Não somos, não temos.

(E, antes que minha mãe mais uma vez me acuse de fugir ao debate, vou logo dizendo, ou melhor, repetindo: tomarei a vacina que estiver disponível, seja ela qual for, venha de onde vier. Mas esta é uma decisão pessoal, baseada apenas no desejo de pôr um fim a esse pesadelo e na análise melancólica de que é preferível beber água suja do rio Yang-Tsé a continuar vivendo assim).

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