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"Ensina-me, Senhor, a ser ninguém./ Que minha pequenez nem seja minha". João Filho.

Literatura/ Cinema

“Papillon”: para quem não aguenta ver as notícias e se perguntar “até quando?”

PAPILLON
Henri "Papillon" Charrière não se rendeu ao desespero impotente da pergunta "até quando?". (Foto: Reprodução/ IMDB)

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Por esses dias aí andou fazendo bastante frio e por isso me lembrei de “Papillon”. Que se passa no calor infernal da Guiana Francesa, mas tudo bem. Acontece que li a história semiverídica (e semifictícia) de Henri Charrière num remoto inverno do final da década de 1980 ou começo da de 1990, e até hoje o frio desperta em mim a nostalgia das primeiras leituras, uma sensação revoltante de injustiça e um inexplicável desejo de liberdade.

O livro, você há de saber mesmo que só tenha assistido ao filme (de 1973) com Steve McQueen e Dustin Hoffmann, ou à versão mais recente (de 2017) com Charlie Hunnam e Rami Malek, conta a história de Henri Charrière, um ladrão condenado à prisão perpétua na Ilha do Diabo, uma espécie de Auschwitz-com-malária na altura da linha do Equador. Uma vez lá, Charrière passa por todos os tipos de privações possíveis e é torturado a ponto de ser reduzido a um animal.

“Mas ele mereceu!”, talvez você, do alto de sua indignação contemporânea, diga. Mas espero que não. Afinal, Charrière era um criminoso – ainda que fosse apenas um batedorzinho de carteiras. E a mim só me resta agradecer a sua intervenção, porque assim tenho a oportunidade de dizer que um dos méritos de “Papillon” é o de nos transportar para um tempo e uma mentalidade nos quais a punição e a compaixão não eram valores excludentes.

Hoje, infelizmente, esse debate está interditado pela turma que defende o desencarceramento em massa e por aqueles que, levados por uma incômoda e permanente sensação de injustiça, defendem pena de morte, Lei de Talião e outras esquisitices morais. Aliás, é para esse último grupo que digo que a injustiça, no caso de Charrière, não está na prisão em si, e sim no rigor do castigo e na crença institucional de que o homem não pode se redimir e não merece nunca uma segunda chance na vida.

Mas nada disso pensei na época. Como disse, era muito novo quando li “Papillon”. Estava mais interessado na aventura. Na sobrevivência. E no desejo de liberdade. E talvez por isso mesmo ele tenha me impressionado tanto, a ponto de sempre incluí-lo na lista dos livros que mais me marcaram e mais contribuíram para a formação moral deste caos ambulante que vos fala.

Até quando?

Por dois motivos. Primeiro, pela vontade de viver de Charrière. Lembro-me de, ao ler o livro, me perguntar seguidas vezes quanto sofrimento uma pessoa é capaz de suportar antes de desistir. E por quê? Para quê? Hoje em dia, tendo passado por um inferno particular, tenho uma resposta bastante satisfatória para essas perguntas todas. Mas na época foi importante ver a dimensão humana da cruz que cada um de nós carrega. E talvez seja importante resgatar esse valor imensurável da vida, com seus altos e baixos, suas poucas alegrias e muitas dores.

O outro motivo, na verdade o motivo que me levou a escrever sobre “Papillon”, foi sua mensagem de paciência. Sem a qual não existe esperança e, por consequência, liberdade – seja ela física, emocional, intelectual ou espiritual. Paciência que, confesso, não aprendi a pilotar direito ainda. E que talvez seja a lição mais difícil de se aprender nestes tempos insanamente velozes e nos quais os ventos sopram uma incessante e sedutora melodia de agora!, de pra-já! e de revolução.

Um tempo caótico que nos faz acompanhar o noticiário e repetir a pergunta sem resposta: até quando? Até quando teremos de suportar Lula e a turma do “perdeu, mané!”? Até quando testemunharemos, dia após dia, injustiças sendo perpetradas com a chancela do STF? Até quando veremos a imoralidade exaltada e tratada como virtude? Ao longo das páginas do romance semiautobiográfico, quem responde é Henri Charrière, um ladrãozinho com uma borboleta tatuada e por isso chamado de “Papillon”:

Até que tenhamos pacientemente aprendido o movimento das marés e, cheios de esperança, estejamos dispostos a nos jogar de um penhasco. Tudo para, sobre uma jangada frágil e improvisada, alcançarmos um mar cheio de tubarões. Um mar incerto como a vida, mas cujas correntes, com alguma sorte, nos levarão a um praia. Onde finalmente alcançaremos a tão sonhada liberdade. Até que nos prendam novamente. Xi, dei spoiler.

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