Outro dia meu colega Alexandre Garcia disse que queria entender por que um advogado que ganha milhões em cada causa, como parece ser o caso de Cristiano Zanin, de repente faz um esforço enorme para ganhar R$37 mil por mês. “Eu não entendo”, enfatiza ele, antes de confessar que não entende também como alguém “com cabeça de advogado” pode querer virar ministro do STF.
Eu entendo. Ou melhor, acho que entendo essa dúvida que não é exclusiva do jornalista uber veterano. Muita gente por aí expressou o mesmo assombro em relação à diferença na renda futura de Zanin. É quase como se todo mundo previsse que o futuro ministro do STF fosse dar um jeitinho de complementar a renda por fora. Ou como se ele fosse trocar o que hoje é lícito pela emoção do ilícito.
Maldade. Se bem que, em se tratando de um advogado do PT, não duvido de nada. E jamais arriscaria chamuscar a pele delicada das minhas mãos para defender o sujeito. Mas me parece que na dúvida de Alexandre de Garcia, bem como nas insinuações dessa gente desconfiada, sobra Marx (é, o Karl!) e falta Dostoiévski. Ou Shakespeare. Ou mesmo Machado de Assis, se é que você faz questão do produto nacional.
Análises desse tipo, isto é, que se atêm ao lado financeiro de qualquer movimento político, filosófico ou religioso, estão por toda parte. Sinal de que Marx (é, o Karl!) realmente contaminou a visão de mundo das pessoas e, ao longo de décadas e décadas de doutrinação, conseguiu reduzir o ser humano a um animal sem alma, movido apenas por aquilo que os antigos chamavam de vil metal.
O problema é que essa ideia materialista do ser humano ignora o que vou chamar aqui, sem qualquer compromisso com a exatidão do termo, de cosmovisão. Todos temos uma. A cosmovisão de alguns é mais elaborada do que a de outros. A do Lula é diferente da sua que é diferente da minha que é diferente da de Cristiano Zanin. E há cosmovisões que de fato privilegiam o dinheiro e só compreendem a vida do ponto de vista contábil.
Tio Patinhas
Mas nesse caso estamos falando de mentecaptos. Ou então do Tio Patinhas. Pessoas normais, entre as quais vou cometer a ousadia de incluir Zanin, são muito mais complexas e tomam decisões com base em elementos que nos são insondáveis. Às vezes é para superar um trauma de infância. Ou para realizar o sonho dos pais. Às vezes é por querer entrar para a história e mudar o mundo. Ou pior, para impor uma visão de mundo sobre os demais. O dinheiro, claro, pode entrar nessa equação complexíssima, mas somente como uma entre tantas variáveis.
É para entender cosmovisões diferentes das nossas, aliás, que consumimos literatura. É graças àqueles romanções russos ou peças do (não acredito que vou usar esse termo!) bardo inglês ou ainda contos do Machadão que temos acesso à alma de personagens fictícios, mas com um pezinho no real. Zanin, Lula, Bolsonaro, Alexandre de Moraes – o mistério quanto ao que os move para além da ambição material se torna menos insolúvel depois que se atravessa as 800 páginas de um “Os Irmãos Karamazov”, por exemplo.
No caso específico do advogado do ex-presidiário-que-virou-presidente, a troca dos milhões pelas dezenas de milhares faz todo o sentido. E pode ser explicada de várias formas. Talvez o poder do cargo, para Zanin, seja mais valioso do que a conta bancária – que, no mais, já deve estar recheada mesmo. Talvez ele prefira os rapapés e a lagostinha nossa de cada dia à possibilidade de, sei lá, comprar uma Ferrari. Talvez a vingança de estar ocupando um lugar teoricamente reservado ao seu antípoda, Sergio Moro, valha mais do que mil barras de ouro.
Dinheiro explica muito do comportamento humano, é verdade. Mas, para a infelicidade do velho Marx (é, o Karl!), não explica tudo. O problema é que, em casos como o de Cristiano Zanin, tendemos a projetar nessas figuras públicas nossos próprios desejos. Alguns deles inconfessáveis, como essa disposição quase automática de justificar escolhas de vida com base no dinheiro. E, na pressa e virulência do debate público, nos deixamos levar pelo lógica mais acessível – que em geral também é a mais simples e pobre.
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