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Não sei você, mas eu sou um dos músicos no naufrágio do Titanic.
Não sei você, mas eu sou um dos músicos no naufrágio do Titanic.| Foto: Divulgação

Já que estão liberadas as comparações entre o coronavírus e a guerra, não vejo problema nenhum em usar aqui outro lugar-comum argumentativo: o do naufrágio do Titanic, imortalizado no cinema com a novelesca história de amor entre Jack e Rose na superprodução do deliciosamente hiperbólico James Cameron.

Aqui e ali já pipocam memes do tipo. Alguns dizem que os líderes políticos são como o capitão do navio, que mandou a embarcação seguir em frente a toda velocidade, os icebergs que se danassem! Outros mostram os economistas como Cal Hockley, o noivo de Rose e capitalista mau e insensível. E, invariavelmente, há os que mostram os músicos que, em meio ao navio que afundava nas águas geladas do Atlântico Norte, tentavam fazer cócegas nos ouvidos das pessoas que em breve estariam transformadas em cubos de gelo.

Não sei você, mas eu sou um dos músicos no naufrágio do Titanic.

Não estou alheio à pandemia. Sei que ela me cerca. Afinal, escrevo para um jornal e a matéria-prima do meu ganha-pão são as notícias. Leio gráficos. Leio entrevistas. Embora insista na ideia de que a pandemia virou peste à revelia dos fatos frios e crus, sei que esta é uma realidade incontornável no curto prazo. A pandemia continuará sendo peste até que se decida o contrário.

Também tenho consciência da minha pequenez diante deste iceberg de medo que se desprendeu de uma placa de gelo tecnocrata e cientificista e que, alheio aos 7 bilhões de titaniquezinhos arrogantemente inaufragáveis, vaga ameaçadoramente pela noite escura de nossos piores pesadelos. Sei que qualquer decisão que eu venha a tomar é insignificante e que, por mais que eu tente me desviar dos lugares-comuns, uma hora ou outra vou acabar escrevendo que “no ruidoso oceano de palavras que estão sendo escritas sobre a pandemia este texto não passa de uma gotícula”.

E tenho medo. Impossível não me deixar contaminar um pouquinho por ele, ainda mais com todos à minha volta gritando e disputando no tapa os botes da salvação física ou metafísica. Viro para um lado e escuto os berros dos que perderão o emprego. Viro para outro e encaro os olhares de reprovação de uma turma que procura manter os pescoços para fora d’água amarrados a precárias boias de dados e modelos matemáticos.

Enquanto isso, estou aqui, cercado por uns poucos amigos, tocando a Suíte no 1 em sol maior, de Bach, em meio à pandemia. Não porque a despreze ou considere tudo uma grande invenção chinesa para dominar o mundo. Tampouco cultuo a morte, como chegaram a dizer por aí. Se toco concentradamente meu cello fingindo ser outro Paulo, o Casals, é porque realmente acredito que, diante do inevitável, o melhor refúgio é o da beleza.

Ainda que não haja ninguém para admirar ou até para criticar aquela nota errada – até porque não é fácil tocar cello no meio de um naufrágio. Se tiro os olhos das cordas por um segundo é para ver todos correndo de um lado para o outro, perdidos, gritando seu grito mais primitivo, os homens se esbofeteando por um lugar nos botes, o capitão abandonando o navio e lá do alto do mastro, um lunático gritando “eu avisei!, eu avisei!”.

Sou o músico em meio ao naufrágio do Titanic porque, se essas serão minhas últimas horas de vida (não serão!), não vou querer passá-las em desespero e desonra. Quero, isso sim, enfrentar o fim inevitável fazendo aquilo que mais gosto de fazer, que é encontrar algum tipo de beleza, algum sinal do divino em meio à balbúrdia diabólica daqueles que depositam toda a sua esperança na flutuabilidade de uma porta.

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