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Já parou para pensar que Sócrates nunca comeu pizza? Nunca comeu chocolate. Nunca provou um sushi.
Já parou para pensar que Sócrates nunca comeu pizza? Nunca comeu chocolate. Nunca provou um sushi.| Foto:

Estavam juntos havia três anos. Mas, naquele dia, naquela hora, naquele restaurante, com aquele prato diante de si, sob aquela meia-luz e ouvindo um discreto som ambiente que podia ser tanto bossa nova quanto hard rock indiano, Pryscielly olhou para Krato com a curiosidade, ainda que não com o interesse, do primeiro encontro.

— Você não vai acreditar — começou ele.

Era uma muleta verbal e ambos sabiam, porque Pryscielly sempre acreditava. Ela se ajeitou na cadeira e fingiu interesse. O que teria acontecido agora na Incrível, Fantástica e Imprevisível Vida de Krato, o Jovem? Será que ele provou sopa de morcego? Será que ele viu um cortejo fúnebre ganês? Ou será que ele tropeçou numa pedra cujo formato parecia o do busto de Margaret Thatcher?

— Eu estava vindo para cá e, no caminho, fiquei olhando a paisagem. As lojas de eletrodomésticos, de roupas, as galerias, essas lojas de capinhas de celular que agora estão em todos os cantos. Já reparou nisso?

Pryscielly pensou em dizer o que achava da proliferação das lojas de capinha de celular, mas achou melhor não. Se ela dissesse que achava que era tudo lavagem de dinheiro (teoria do amigo de um amigo de um amigo), Krato diria que não entende o que é lavagem de dinheiro e ela tentaria explicar e ele fingiria ter entendido e a conversa rumaria perigosamente para o terreno das teorias da conspiração que tanto o fascinavam.

— Já — respondeu Pry. Um “já” quase sussurrado, quase um suplício que Krato, em sua empolgação característica, não percebeu.

— Então. Onde é que eu estava mesmo? Ah. Andando por aí. Você sabe que eu sou melancólico, né? Ainda mais com esse frio e esse Sol e...

Ela sabia, claro. Quem não sabia? Krato adorava esse seu lado melancólico, essa coisa ridícula de achar que os homens tristes são mais inteligentes e mais bonitos. Às vezes essa melancolia fingida transbordava e virava uma depressão que o deixava prostrado na cama, implorando por um fim que aliviasse a dor que ele sentia na alma – palavras piegas dele. Mas quem garante que não é só charme?

— Aí é curioso como uma coisa leva a outra — continuou ele. — E eu de repente me vi ali, de pé na pizzaria Itália, comendo aquele pão com queijo que eles teimam em chamar de pizza e bebendo vitamina, e evocando os grandes nomes do passado. Que tipo de gente pensa em Sócrates no meio da pizzaria, meu amor? Que tipo de gente?!

Pryscielly tinha perdido algo no meio do caminho. Mas não fazia falta. Porque, no fundo, nada do que Krato dizia tinha a ver com o mundo real. Era sua maior qualidade, embora às vezes soasse como um defeito irritante. Pryscielly não entendia por que um homem que se achava tão inteligente, que às vezes chorava no banho implorando aos céus para ser medíocre, não tentava ganhar dinheiro na Bolsa de Valores, não se manifestava politicamente, não falava de Fórmula 1 ou futebol. Era só poesia e filosofia e essas coisas que não levam a nada.

— E daí eu me dei conta de uma coisa — anunciou ele, deixando um suspense no ar. Pryscielly revirou os olhinhos, entediada. O silêncio pairou por alguns segundos. Krato olhou para trás, meio impaciente, como se estivesse sendo perseguido por uma polícia secreta de alienígenas. Ah, não, meu Deus! Será que ele vai falar que está sendo perseguido por uma polícia secreta alienígenas?

Foi quando o garçom se aproximou trazendo uma garrafa de espumante. Os dois foram servidos e Krato tirou do bolso uma caixinha de joia. A princípio, ao ver aquilo, Pryscielly, com os pés firmados na terra, pensou em contas, no custo da festa e da mobília, se ia ou não usar o sobrenome dele, na rotina, na velhice, nos atritos da convivência, na morte. Na sua amiga Julyanna, que acabou de descobrir que o marido tem uma segunda família. Ou na Raphaelly, cujo marido não saía do bar.

— Na verdade — corrigiu-se Krato — me dei conta de duas coisas. Primeiro, que você é o amor da minha vida e que já está mais do que na hora de a gente oficializar isso. Ainda mais agora que as coisas começaram a dar certo para mim. Aquele 3º lugar no Concurso de Poesias de Piraporinha do Oeste não foi por acaso.

Ele abriu a caixinha e lá estava o infalível anel de noivado. Aliança baratinha, comprada em dez vezes no carnê. Uma joia cujo valor material era inversamente proporcional ao que sentia Krato por Pryscielly. E vice-versa. Porque naquele instante, tendo diante de si um sinal muito concreto do amor, ela finalmente entendeu que Manuel Bandeira estava enganado ao dizer que as almas são incomunicáveis. Mas o que esperar de um poeta que teve como primeira namorada um porquinho-da-Índia, não é mesmo?

— E em segundo lugar... Caramba, Pry. Já parou para pensar que Sócrates nunca comeu pizza? Nunca comeu chocolate. Nunca provou um sushi. É provável que o coitado nunca tenha provado nem um churrasco grego desses que vendem na rua. Já imaginou o estrago que uma pizza talvez causasse em toda a filosofia ocidental se ao menos Sócrates tivesse provado um pedacinho?

Mas Pryscielly, que não conhecia Sócrates e que na semana passada comeu uma pizza que não lhe caiu muito bem, não deu ouvidos ao namorado, agora noivo. Sonhando já com a marcha nupcial e com um pequeno choramingando noite adentro, ela respondeu com um evasivo:

— É... É fogo.

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