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Na beligerância atual, quem corrige parte do pressuposto de que a pessoa que errou é uma ignorante que não domina nem o básico da língua.
Na beligerância atual, quem corrige parte do pressuposto de que a pessoa que errou é uma ignorante que não domina nem o básico da língua.| Foto: Bigstock

Estava no meio das compras, prestes a concluir os itens essenciais para dar início às delícias engordativas, quando senti uma coceirinha meio estranha no cérebro. Dei mais alguns passos e passei pelo café que estava na lista, mas o ignorei. Percebi logo que não conseguiria terminar as compras com essa angústia. Saquei o celular do bolso e não deu outra: lá estava o erro ortográfico.

Crasso, como convém chamá-lo. E, neste caso, um tanto quanto inusitado. Troquei mal por mau – o que nunca me aconteceu antes (dizem). Não que eu lembre. Uma vez constatado o erro, senti a calva e o rosto queimarem de vergonha. Olhei para os lados. Era como se todos no mercado apontassem o dedo para mim e me chamassem de burro. No caixa, a atendente passava as compras pelo leitor num silêncio que, para mim, era pura zombaria. “Débito ou crédito?”, perguntou ela na hora fatídica. Nas entrelinhas, contudo, entendi que ela estava questionando minha capacidade de escrever. O “tchau” que ela me deu soou como um “nunca mais volte aqui, seu analfabeto!”.

Entrei no carro e dirigi feito um louco, me desviando dos radares novos que o prefeito diz serem capazes de flagrar até motorista porco tirando tatu do nariz. Foi quando a vergonha deu lugar à revolta com um quê de depressãozinha. Afinal, o texto estava publicado já há algumas horas e ninguém – ninguém! – me corrigiu. Um erro tão evidente. Tão... crasso. Tão humilhante. O mais solitário dos escritores é aquele que não tem ninguém para lhe dizer que o certo era mal [põe a língua no céu da boca].

Se bem que talvez seja melhor assim. Nesses tempos em que tudo o que os adversários mais querem é um tropeçozinho no português que sirva como prova da estupidez e, já que estamos nessa toada, má intenção do outro lado, é até um consolo notar que a geração Paulo Freire não tem capacidade de reconhecer um erro ortográfico. Quanto mais avaliá-lo por sua gravidade ou não.

Porque, convenhamos, há erros e herros. Errar o mal/mau, por exemplo, é uma coisa; errar crase é outra totalmente diferente. Errar os porquês é plenamente perdoável; já o “para mim fazer” é caso para cadeira elétrica. Em se tratando de erros ortográficos, também é relevante quem erra. Um cronista que erra é umano; já um ministro da Educação que erra é alguém que, sei lá, vai autoritariamente impor o erro como nova norma. Ou qualquer outro desses delírios aí.

Finalmente cheguei em casa. Deixei as compras no carro mesmo e corri para o elevador. Subi os poucos andares que pareciam mais de uma centena entoando um mantra: mal é o contrário de bem; mau é o contrário de bom. Diante da porta de casa, a chave parecia não entrar na fechadura. Pensei em arrombar tudo e gritar “eu preciso corrigir aquele erro!!!”, mas é que sou exagerado mesmo. Uma vez dentro do apartamento, ignorei os pedidos de atenção do gatinho e corri para o computador.

Sensação de alívio, essa de se autocorrigir. É como se estivesse colocando ordem no mundo. Não, no Universo! Saiu o “u” e entrou o “l”. E tudo o que não fazia sentido havia apenas um segundo agora parecia cristalino. A grama voltou a ser verde. Dois mais dois voltou a ser quatro. Me senti tão bem que ousei até fazer algumas considerações sobre os erros alheios. Afinal, o que é mais repugnante: um mau que era para ser mal ou quem não sabe usar o verbo “possuir”? Um porquê que era para ser separado e acabou junto ou essas pessoas que não sabem organizar a sentença e usam vírgula depois de travessão? Um há que ficou capenga do agá ou quem semeia vírgulas a esmo pela frase? Ou ou ou ou – me empolguei.

No fundo (tá, nem tão no fundo assim) essa coisa de ficar corrigindo os outros é perversazinha. Porque aquele que corrige raramente leva em consideração o lapso ou a pressa ou a confusão mental depois de um dia cheio de trabalho. Na beligerância atual, aquele que corrige sempre parte do pressuposto de que a pessoa que errou é uma ignorante que, se não domina o básico da língua, a ortografia, tampouco domina os elementos mais complexos dela.

Nem bem desliguei o computador, feliz por não viver mais na era do jornalismo impresso, quando me bateu a dúvida novamente. Aquele senão no parágrafo acima é junto ou separado? Na cozinha, minha mulher contava um sonho ou falava da inflação argentina – não tenho a menor ideia. Incapaz de continuar alimentando a dúvida quanto à minha própria capacidade de escrever, saquei o celular do bolso e. Ufa.

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