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Como 44 é assim praticamente a metade de uma vida bastante bem vivida, alterno entre o sonho e a recordação. Não são a mesma coisa?
Como 44 é assim praticamente a metade de uma vida bastante bem vivida, alterno entre o sonho e a recordação. Não são a mesma coisa?| Foto: Bigstock

É meu aniversário e eu digo ao editor que preciso dar continuidade à Tradição. Ele reclama. Não é todo mundo que gosta de aniversário. E não é todo mundo que respeita a Tradição. Argumento que há mais de 20 anos, no dia 8 de dezembro, escrevo um texto sobre meu aniversário, sem jamais repetir o mote. Não é exatamente verdade. Falhei alguns anos e é bem provável que eu tenha me repetido. Mas, se você está lendo este texto, é porque o argumento funcionou.

A dificuldade, este ano, está em encontrar algo que oriente o texto todo. O tal do mote. Em 2017 foi fácil: eu estava completando 40 anos redondinhos (em vários sentidos). Dois anos mais tarde, moleza: foi só usar os quilômetros da maratona para me pintar como um vencedor qualquer. Ano passado bastou falar da peste-que-não-é-peste – o que, por sinal, despertou a ira de alguns. Como alguém pode celebrar alguma coisa em meio a uma pandemia, não é mesmo?

Pois celebro e celebro cada vez mais tudo o que é passível de celebração. No caso dos 44 anos, contudo, que referência fazer? Ao contrário do meu número da sorte (é segredo) e do “8”, que nada mais é do que um infinito que acordou para a vida finita, o 44 para mim nunca significou nada. Nunca foi nada. À parte isso, ainda tem todos os sonhos do mundo, o coitado. Digo, provavelmente.

Para falar a verdade, sequer sonhei que chegaria até aqui. E, se na metade do caminho parei para vislumbrar como seria minha vida aos 44 anos, não me lembro. Aos 22 anos, a gente pensa que a vida é a interminável construção do eu. Aos 44, contudo, ao “eu” só faltam uns acabamentos e uns remendos rotineiros na fiação elétrica e nos encanamentos para que ele seja mantido. Antes da incontornável ruína, isto é.

Se hoje olho para trás, portanto, é do alto do 44º andar desse edifício em que aos trancos e barrancos me transformei. Porque o céu está claro, vejo bem distante o bebezinho de olhos assustados, depois a criança perdida, o adolescente insuportável, o jovem adulto ansioso, o adulto precocemente cansado, o trintão de All Star e, por fim, o quarentão vivendo a insuportavelmente clichezenta crise de meia-idade.

Dever comprido

De uns tempos para cá, não sonho em comprar uma Harley Davidson, apesar da propaganda do meu amigo William. Sonho, isso sim, com a calma que, me prometem os especialistas, a velhice me trará. Sonho com a sabedoria que me permitirá escolher quais batalhas travar. Sonho com a coragem para enfrentar os Grandes Sofrimentos Absolutamente Previsíveis Que Todo Mundo Sofrerá Um Dia. E, só porque a criança nunca morreu exatamente, sonho um pouquinho, bem pouquinho mesmo, com aquela Kombi vermelha na garagem da chácara onde crio abelhas que, já meio lelé, chamo individualmente pelo nome.

Como 44 é assim praticamente a metade de uma vida bastante bem vivida, alterno entre o sonho e a recordação. Não são a mesma coisa? A recordação é o sonho do que aconteceu. Pegamos a memória, que em geral é rústica, e a enfeitamos com laços de todos os tipos. Na recordação, repara, o amigo é quase irmão. Na recordação, repara, até mesmo o amor mais atribulado tem um quê de pureza eterna. Na recordação, repara, as risadas se sobrepõem a quaisquer choros.

Em recordando, me vejo celebrando os muitos sonhos realizados ao longo de 44 voltas ao redor do Sol. Paixões e conquistas e trofeuzinhos que a gente levanta no pódio silencioso da alma, antes de dormir. Até a bobagem de comprar um selo com mais de 150 anos. Tantas são as realizações que um dia, acredite se quiser, precisei de ajuda médica: doutor, sou o homem mais realizado do mundo e não tenho por que viver. Eu era um Colombo voltando para o Velho Continente e, entre uma tempestade e uma calmaria, pensando que já tinha feito tudo o que havia para fazer na vida.

Tolinho. Faltava muito. Faltava, por exemplo, ter um editor para convencer de que neste ano e no próximo e no próximo não posso deixar de seguir a Tradição. Faltava ter o leitor que me ama – mas só porque não me conhece. Faltava ter o leitor que me odeia pelo mesmo motivo. Faltava pôr o ponto final em muitos outros textos e, aqui e ali, num poeminha que vai para o fundo da gaveta. Faltava, ou melhor, falta chegar aos 88 com a sensação de ter cumprido o dever comprido.

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