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A convocação de manifestações por parte do General Heleno, nas últimas semanas, é estopim de um processo maior que não se resume — nem deveria — a um corriqueiro conflito por nacos do orçamento. Paralisado e sem foco, o governo se debate diante da própria inabilidade em lidar com um país complexo que não se resolve via chavões ou “narrativas”, a base política de seu projeto.

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Não deveria soar escandaloso para Heleno uma disputa por 11 bi de orçamento quando seu governo foi, no ano passado, recordista na liberação de emendas. Mais: emendas para fins não muito republicanos, como a nomeação de Eduardo Bolsonaro para a embaixada americana. O que vemos neste momento é uma cortina de fumaça para um problema maior, cujos sintomas se dão em outras áreas e afetam diretamente os pressupostos do governo.

Comecemos por Paulo Guedes. Neste instante, um conflito direto com o Congresso praticamente inviabiliza a continuidade do seu projeto liberal. Emendas à Constituição naturalmente desgastante para deputados, como a reforma administrativa, começam a sumir no horizonte. O outrora superministro não percebe uma superdisposição do governo em impor uma sequência de reformas. Encontra, no máximo, uma supercobrança por aumento de PIB — uma injustiça tendo em vista a natureza de longo prazo de seu projeto.

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O governo, porém, quer pibão. Quer emprego, resultados, números que não vem. A empolgação desmedida, alavancada por uma bolsa distante da realidade — e pelo discurso desajeitado de empresários governistas — passou. O motorista de Uber continua no Uber; seu filho, com sorte, poderá pedalar no Rappi. E o governo não encontrará, ao menos no curto prazo, argumentos que justifiquem uma adesão apaixonada.

Nesse sentido, é fácil compreender o desconforto de Paulo Guedes. Cobram-lhe os números quando o que propõe, em resumo, não é PIB para curto prazo; é, sim, uma revolução na máquina do Estado, com efeitos duradouros para as próximas gerações. Seu erro foi imaginar que o bolsonarismo, apegado a memes e impressões, devotaria seu governo à causa. Sem base congressual e operando na base do conflito — diante de um legislativo que já aprendeu a lidar com a pressão das redes — não há como ficar animado. O (super)ministro encontrou sua kryptonita.

Se o impasse gera impotência, o que imaginar de ameaças reais à própria noção de idoneidade dos Bolsonaro, como a crise envolvendo a morte do PM Adriano? Mais do que os elementos que ligam o miliciano à família — as homenagens rendidas na Alerj, os parentes no gabinete de Flávio, sua proximidade com Queiroz, a visita de Eduardo à Salvador na semana do crime —, impressiona a energia devotada pelo presidente e seus filhos, nas redes, à criação de narrativas sobre o tema.

Se o caso Adriano não preocupasse, por que sua morte motiva tantos comentários do líder maior da nação? Por que diabos impele o presidente da República a denunciar ferozmente uma suposta “armação do governo petista da Bahia”, ou uma possível “infiltração de conversas falsas” em seu celular? O que a morte desse criminoso — e Adriano não é nada além disso — nos esconde além dos elementos já sabidos?

É fato: a iminência da denúncia do Ministério Público contra Flávio Bolsonaro no caso das rachadinhas, somada à morte do miliciano, desperta um estranho clima de cidadela sitiada no bolsonarismo. Não à toa, o presidente povoou o planalto com militares, sob uma inédita anuência de Olavo de Carvalho — que voltou a falar em uma “aliança entre o povo, o presidente e o exército”. Significa. Muito.

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Estranhamente, repetimos em 2020 os momentos de tensão vividos às vésperas de maio de 2019. À época, havia também um clima de ruptura institucional no ar; falava-se em parlamentarismo branco, sabotagem ao governo e nos desdobramentos do caso Queiroz. Anunciavam uma convocação, dirigida por grupos governistas, como resposta a um possível “enquadro" que tomavam do Congresso e do STF; temiam o impeachment, mas não sabiam explicar suas razões. Hoje, além disso, temos as estranhas greves policiais — até agora sem reprovação do presidente e ministros — a servir de pano de fundo para o conflito anunciado.

Desunido e confuso, o governo Bolsonaro saiu perdendo em 2019. Entregou sua pauta econômica ao Congresso — com reflexos que explicam o desânimo de Paulo Guedes —, e mandou a agenda anti-corrupção às favas, aceitando a nomeação de Aras à PGR e outras contradições ainda não explicadas. Seu filho Flávio — motoboy da impunidade no Senado — que o diga.

Com militares e olavistas pacificados — seu núcleo essencial —, Bolsonaro se pinta para a guerra. Mais experiente, aposta nos métodos tradicionais de cooptação da velha mídia — via Secom — em detrimento de suas outrora dominantes redes sociais. Tem grandes canais de televisão no bolso — à exceção da Globo —, enquanto se aproxima ainda mais do eleitorado evangélico. É um governo com mais Damares e menos Paulo Guedes; com mais Sikeira Jr e menos Sérgio Moro.

Como em 2019, não sabemos exatamente o que motiva seu mergulho no abismo. Podemos enxergar elementos, aqui e acolá, que justificam sua preocupação. Mas os próximos dias serão fundamentais para entender as razões que levam Bolsonaro, mais uma vez, a colocar o executivo em rota de colisão com os demais poderes. Tempos turbulentos à vista.