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Daiane dos Santos tornou-se famosa nacionalmente por lançar um tipo de acrobacia original no mundo da ginástica artística: era o duplo twist carpado, sorte de manobra ao redor do próprio eixo que ocorria durante seu salto. A ginasta brasileira chegou favorita à medalha de ouro nas olimpíadas de 2004, em Atenas, mas falhou; terminou dançando ao som de brasilerinho, distante do podium, frustrando a massa de fãs que torcia para seu sucesso.

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Enquanto legado, restou o meme: diz-se que fulano pratica um “duplo twist carpado” quando tenta justificar o injustificável — não necessariamente ao som de brasileirinho — com argumentos criativos e cara de pau retinta. Foram Daianes os diversos blogueiros progressistas dos tempos de PT, que resssignificavam os crimes de seus amos retorcendo o verbo sem vergonha. E são Daianes, hoje, os bolsonaristas que ainda restam após o apocalipse moral da última semana.

A história ainda irá relatar os acontecimentos recentes no governo Bolsonaro com o devido peso. Além da traição óbvia ao próprio programa, Jair traiu o espírito dos seus eleitores. Mais: conseguiu, prodígio único, desconstruir a oposição eleitoral lógica entre petismo e anti-petismo, manifesto no recorte social entre os setores e regiões que produzem e pagam a conta do estado e aqueles, ainda caudatários, que vivem de repasses federais e auxílios governamentais.

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Bolsonaro fora eleito como representante do “Brasil azul”, aquela parcela que inclui o centro Sul e centro oeste, responsável por votar (e perder) com o PSDB ao longo das duas últimas décadas. Expressou, de forma até irrazoável, toda a raiva entalada na garganta de uma massa que pagou a conta e foi excluída da festa; um Brasil produtivo que fora alvo de saque das políticas fiscais dos governos petistas, demonizado em seu modo de vida e travestido de vilão no discurso politicamente correto que tomou de assalto a grande mídia.

Com o “capitão”, tal massa finalmente chegava ao poder. Sua perspectiva de Brasil poderia então se fazer representada. Com tino político, Jair e seus definiram seu início de governo como “Nova Era”; para os eleitores, um corte temporal era traçado entre os governos ilegítimos do PT e Michel Temer, responsáveis pela “roubalheira” dos tempos pregressos, e os novos tempos de ordem, moralidade e progresso conduzidos pelo triunvirato Bolsonaro/Moro/Guedes.

Seria repetitivo narrar a trajetória de bagunça e traições que nos trouxe até aqui. Nos interessa, outrossim, firmar pé na aposta absolutamente descarada do presidente; ele não apenas traiu sua base. Fez questão, acima de tudo, de tripudiar de seus antigos eleitores, chamando-lhes de “direita burra”. Teceu loas aos novos aliados e não se fez de rogado ao tornar-se parte integrante — sócio minoritário — no consórcio político a que chamavam de “establishment”.

Bolsonaro fez piada de suas antigas crenças. Exige que sua equipe econômica crie um programa de transferência de renda, que suga recursos de seu antigo eleitorado para seus novos adeptos. Constrói pontes com investigados pela Lava-Jato — a mesma que afirmou ter encerrado — para levar obras para a região Nordeste, outrora reduto petista. E exige, sem cerimônias, que o antigo eleitorado, de forma humilhante, se submeta aos seus caprichos sem direito a reclamar.

Os tradutores da nova doutrina bolsonarística, espalhados em veículos de rádio, televisão e imprensa escrita, vem tendo dificuldades em catequizar sua massa de seguidores com a confusa boa nova do grande mestre. De tão contraditório, resta apenas o exercício de fé cega e purgação de pecados. O velho bode expiatório petista virou buchada para o novo eleitorado; para as bandas do centro sul já não serve de argumento suficiente.

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Ainda assim, eles tentam. É dever de ofício — pena à venda tem que entregar o que comercializa. E tome-lhe “o presidente é pragmático”, “precisamos de reformas”, “deve-se jogar o jogo”. São os mesmos que atacavam as “raposas” e defendiam a presidencialismo de destruição de 4 meses atrás. O discurso antigo, vá lá, ainda enganava; este, por seu turno, busca desengajar moralmente os eleitores de suas próprias crenças. É, por si só, asqueroso.

O duplo twist carpado do jornalismo gado inicia agora sua fase mais canalha: é hora de arrancar a esperança do coração de seus leitores. Emulam assim o jornalismo profissional dos tempos de mensalão, que prometeu crescimento às classes médias às custas de sua indignação. Deu errado — redundou apenas em revolta reprimida que estourou em 2013. E dará ainda mais errado com Bolsonaro.

Lula, à época, conseguiu entregar crescimento. O atual presidente, porém, nos aguarda com arrocho, impostos e privilégios. Não haverá desengajamento. Haverá revolta. A direita que chamou de burra irá procurar sua turma. E isso será a grande novidade eleitoral para 2022.