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O que seria do ser humano sem a linguagem? Ou, melhor dizendo, é possível falar de ser humano sem linguagem? Disse Aristóteles, para perene memória, que “o homem é um animal racional”. Entretanto, quando o disse em grego, serviu-se do termo zoon logikón, o qual pode ter diferentes interpretações. Logikón, que deriva de logos, pode fazer a expressão significar “animal racional”, mas também “animal lógico”, “animal discursivo” – trocando em miúdos, “bicho que fala”. Quer dizer que a linguagem não é simplesmente um acidente, algo que ocorra ao homem por acaso, mas algo que está imbricado em sua própria natureza. Ser humano é ser logikón, e nosso estar no mundo se dá por meio da linguagem. Contudo, quando nos relacionamos, não entram em jogo apenas nossas palavras, mas também nossos atos e omissões. Cada gesto, cada silêncio, cada frase dita ou deixada de dizer contribui para o modo como nos conectamos com o mundo e com aqueles que nos cercam. A aquisição da linguagem, portanto, não está ligada estritamente à fala e à comunicação verbal: ela tem um fundamento profundo, e ocorre desde os primeiros meses de vida – e, diga-se de passagem, prolonga-se indefinidamente até a idade adulta.
Desde o nascimento, o ser humano inicia sua trajetória de apropriação da linguagem oral. Logo que nasce, a criança não fala nada; dentro de certo tempo, começa a balbuciar, e esse seu balbucio vai transformar-se progressivamente em palavras à medida que a criança primeiro identifica e repete sílabas iguais, depois sílabas distintas, até que consiga nomear objetos e experiências de forma mais precisa, com base no que ouve e vê. Cada etapa desse processo representa um avanço na capacidade de se colocar no mundo, de expressar desejos, sentimentos e necessidades.
Onde essa linguagem se constrói, em primeiro lugar? No lar, na vida familiar. O modo como falamos com nossos filhos, como nos dirigimos ao nosso esposo, aos nossos filhos mais velhos, mas também aos que frequentam nossa casa, como nossos pais, irmãos e amigos, molda o fundamento, a base da compreensão verbal da criança. É por meio dessa imersão constante que ela aprende a se expressar e a interpretar o mundo que a cerca. Nomear o que sente e o que deseja não é apenas um exercício de “vocabulário”, não existe linguagem por si mesma: trata-se sempre de um gesto de mediação entre sua experiência interior e a realidade externa.
O contato constante e atento com a criança – no simples ato de trocar fraldas, de acordá-la ou de acompanhá-la nas pequenas rotinas diárias – é bastante decisivo. Cada expressão facial, cada sorriso, cada tom de voz contribui para que ela compreenda emoções, normas de conduta e relações sociais. A consistência desse contato – o que podemos chamar de “linha de base” afetiva e verbal – permite que a criança perceba quando algo diverge do esperado, como um gesto inadequado ou uma reação imprópria, e aprenda a ajustar seu comportamento sem necessidade de castigos.
Ler para a criança não significa apenas transmitir palavras: é, antes ainda, criar experiências emocionais positivas, e fortalecer vínculos afetivos
Quando a criança domina progressivamente a linguagem verbal, ela adquire estabilidade emocional e social. Crianças capazes de expressar suas necessidades e frustrações de forma articulada lidam melhor com a própria frustração e se relacionam com mais segurança com os outros. E esse domínio, muito em breve, não vai mais se restringir apenas ao círculo familiar: ao crescer, a criança amplia pouco a pouco seus círculos de interação, para conquistar progressivamente novas relações e contextos sociais. O ambiente familiar desempenha, portanto, um papel insubstituível na aquisição da linguagem. É nele que as deficiências iniciais são supridas, e é por meio do amor e da mediação cuidadosa que a criança aprende a falar de maneira adequada.
Em contraste, a exposição excessiva a telas – nas quais geralmente desfilam animações agitadas, comportamentos simplórios, estímulos sensoriais desprovidos de sentido – não oferece a mesma riqueza linguística. A linguagem que surge das telas é frequentemente caricata, esquemática ou em franco descompasso com a realidade verbal, incapaz de substituir a interação humana direta. Quem nunca viu uma criança dizer frases ou fazer gestos afetados, claramente imitados de alguma referência, e que não faziam sentido no contexto concreto? Nenhum desenvolvimento, seja físico, intelectual ou emocional, prescinde da mediação consciente e afetuosa de um adulto. A aquisição da linguagem não é apenas o aprendizado de palavras, mas a construção de uma ponte entre o indivíduo e o mundo, entre o interior e o exterior, entre o sentir e o dizer.
No percurso da infância, os pais assumem um papel singular: tornam-se intérpretes da criança para o mundo e do mundo para a criança. A cada gesto observado, a cada expressão percebida, os pais decodificam o que a criança sente ou pensa – fome, cansaço, irritação, alegria – e traduzem essas experiências internas em linguagem compreensível. Ao mesmo tempo, explicam o mundo exterior, mostrando o sentido de relações familiares, elucidando os conflitos entre irmãos, ou até questões mais complexas, que por vezes as crianças querem entender, como valores morais e dilemas sociais. E esse exercício de mediação não restringe a liberdade da criança; ao contrário, é um expediente necessário da verdadeira educação. Isso forma sua consciência, ensinando-a a enxergar as nuances e a discernir. Tudo isso é aprendizado de linguagem, que é, no sentido amplo da palavra, nada menos que a própria interação do ser humano com o mundo.
À medida que a criança cresce, sua linguagem se expande até que sua capacidade de expressão atinja certa autonomia, e a criança passe a ser capaz, inclusive, de ampliá-la sozinha. No ambiente escolar, colegas e professores passam a exercer influência significativa, e a criança aprende a “negociar” seu repertório de signos e sinais, a compreender diferentes pontos de vista e a adaptar-se a contextos variados. Na adolescência, o foco de atenção desloca-se progressivamente da família para o grupo de pares. Nesse estágio, a qualidade das amizades e a solidez dos valores que, na infância, a criança absorveu de coração revelam-se pré-requisitos para que consiga interagir de forma salutar com o que é diferente, respeitando a individualidade alheia sem que isso abale a segurança que tem em seus valores – e sempre, de um modo ou de outro, desejando o bem do outro.
Um adulto maduro, enfim, é o que absorveu com razoável qualidade o arcabouço de seu idioma, no sentido gramatical e vocabular, mas também o que maneja essa linguagem verbal em consonância com a experiência concreta – a dele, e a do outro. Quer dizer, é capaz de expressar, ao menos para si mesmo num primeiro momento, as suas experiências de vida, o que lhe permite perscrutar-lhes o sentido; e é capaz, também, de compreender a experiência do outro, ter compaixão por seu sofrimento ou partilhar de sua alegria, lendo o que o outro expressa para além de sua linguagem verbal, muitas vezes, mas “adivinhando” seu mundo interior, os referentes que são suas emoções, suas interpretações, as nuances de sua perspectiva, etc.
A arte em geral, mas muito especialmente a literatura, tem um papel crucial nesse aprendizado, nesse cultivo da alma. Nem todos precisam ler letrados, é verdade, e também é verdade que a maioria da população no Brasil, hoje, não chega perto dos livros. Mas não adianta romper este artigo com estatísticas para chorar nossa brasileira pitanga, e lamentar a incultura nacional – há outros articulistas empenhados em fazê-lo. O caso é que, para que isso seja um pouco diferente amanhã, devemos introduzir a literatura na vida de nossos filhos desde cedo.
A leitura em voz alta de livros ilustrados pode desde cedo desempenhar um papel nesse processo de educação linguística da criança. Eu venho insistindo sobre esse ponto em minhas redes sociais, e há também outras pessoas e inclusive editoras infantis empenhadas e comunicar essa realidade. Cada figura apresentada no livro – um cachorro, uma montanha, um leão de juba dourada, uma casa de telhado alaranjado, uma fruta brilhosa... – permite à criança nomear objetos e identificar ações, estabelecendo pontes entre palavra e realidade, entre som e significado. Quanto mais exposta a representações visuais e verbais desde cedo, maior a capacidade da criança de compreender e se relacionar com o mundo, pois aprende que os nomes das coisas já existem, independentemente de sua invenção particular.
Mas, para além disso, ler para a criança não significa apenas transmitir palavras: é, antes ainda, criar experiências emocionais positivas, e fortalecer vínculos afetivos. A prática da leitura em voz alta desde cedo – até mesmo durante a gestação – estabelece bases sólidas para o gosto pela leitura e para a compreensão do mundo por meio da linguagem. O prazer da leitura surge da experiência compartilhada, do tempo dedicado, do cuidado com as palavras e da atenção à resposta da criança.
Por meio da narrativa, a criança compreende normas como honestidade, fidelidade, cuidado com os outros e delicadeza nas ações
Na prática cotidiana, o momento de leitura pode ser estruturado de diferentes formas: leituras coletivas com todos os filhos, leituras individuais ou leituras voltadas para o aperfeiçoamento da alfabetização. O essencial é criar um espaço afetivo, acolhedor, que a criança reconheça como seguro e prazeroso. Cada livro lido é uma oportunidade de ampliar círculos de entendimento, desde o ambiente familiar até a interação com zonas mais amplas do mundo, às quais a criança acessa na medida em que cresce. Os livros vão sendo como ferramentas que, ao longo da vida, abrem novos círculos de conhecimento da realidade por meio da linguagem.
A leitura em voz alta, mais do que a simples transmissão de palavras, é um exercício de atenção, de paciência e de interação com a criança. Pensando em coisas com essas, corremos o risco de imaginar um lindo momento ideal, com a criança sentada em nosso colo, contemplando cada página, e a quebra dessa expectativa pode nos frustrar. Muitas vezes ela estará brincando de Lego, moldando massinha, desenhando, fazendo dois bonecos interagirem... Mas tenham tranquilidade: isso não significa desinteresse. Ao contrário, é um primeiro estágio de envolvimento. Aos poucos, a criança aproxima-se da narrativa, acolhe o livro e começa a participar da história à sua maneira. Quanto mais habituada à narrativa, mais ela conseguirá fazer perguntas pertinentes, interagir com a história, e relacionar personagens e acontecimentos com a sua própria realidade.
Nos primeiros momentos de leitura, a criança pode querer repetir páginas, focar apenas em uma figura ou se distrair com detalhes. Cabe aos pais valorizar essa atenção fragmentada, sem estresse. Se o interesse se concentra em um cachorro, por exemplo, é uma oportunidade de explorar cada detalhe: olhos, orelhas, patas, movimentos, comportamento. Isso pode levar a uma conversa sobre os cachorros que ela conhece, se sabe imitar o seu latido... Pode levar a criança a contar a você como se sentiu em determinada situação, talvez dar voz ao medo que sentiu de um cachorro, e processar esse sentimento. Pode fazê-la notar a diferença entre um cachorro e um lobo, entre um cachorro e um gato etc. A leitura é ocasião para um diálogo constante, que expande o vocabulário, fortalece a percepção do mundo e introduz conceitos que vão além do que está na página. Não é para isso que servia a literatura, afinal? “Cumprir tabela”, no sentido de se poder afirmar que leu o livro inteiro, ou que leu tantos livros, não vale nada por si mesmo. A leitura não é um processo de ritmo contínuo, é uma apreciação dialogada. Deve haver espaço (e tempo) para perguntas, comparações e associações: o que este personagem lembra na vida real? Que objetos ou situações já conhecemos? Que outras histórias se conectam com essa? E assim se ensinam os rudimentos dos mecanismos mentais de um leitor proficiente.
Tomemos um exemplo prático: um livro simples sobre um menino chamado Paulo, que pastoreia uma ovelha e precisa de uma roupinha nova. A leitura permite explorar o ciclo completo do aprendizado: identificar os animais, compreender a transformação da lã em fio, do fio em tecido, do tecido puro em tecido tingido, e enfim do tecido costurado em roupa, relacionando cada etapa à vida cotidiana da criança, às suas relações familiares e sociais, aos gestos de generosidade e de ajuda mútua. Assim, ela aprende não só a sequência lógica da narrativa, mas conceitos concretos (profissões, cuidados com os animais, processos artesanais) e abstratos (paciência, planejamento, esforço e recompensa).
As histórias também introduzem valores morais de forma orgânica. Por meio da narrativa, a criança compreende normas como honestidade, fidelidade, cuidado com os outros e delicadeza nas ações, muitas vezes de maneira mais eficaz do que com códigos rígidos ou instruções diretas. E isso nem sempre se dá por meio da narração de comportamentos louváveis, não – e esta me parece ser uma confusão comum hoje em dia. As histórias que apresentam meninos travessos, que praticam desobediências, mentiras ou brigas não devem ser necessariamente ocultadas dos olhos das crianças. Ao contrário: devem ser apresentadas numa leitura dialogada, para que, por meio da experiência imaginativa da história, e da aquisição da linguagem adequada àqueles fatos, as crianças entendam o sentido negativo e a consequência indesejada daquelas ações. A história vai ajudá-las justamente a não praticar aquelas atitudes quando a oportunidade e a tentação se apresentarem.
Um exemplo icônico – um livro que é sucesso em minha casa, mas que é, na verdade, um sucesso absoluto no mundo inteiro – é o livrinho Uma lagarta muito comilona. O livro apresenta as imagens de vários objetos, os alimentos que a lagarta vai comer, o que ensina a criança a nomear as coisas. Mas ele também traz a progressão numérica, das quantidades das frutas, o que é outro ponto positivo. Ademais, a narrativa toda, que é breve, contextualiza a ação de comer, dentro do processo de crescimento de uma lagarta que se transforma em borboleta. Essa compreensão temporal – que algo não nasce pronto, que existe um processo de transformação – prepara a criança para entender sequências complexas: na leitura, na escrita e sobretudo na vida. Assim como ela aprende que a lagarta antes era ovo e depois se tornará borboleta, mais tarde compreenderá que a alfabetização não é apenas reconhecer letras, mas combinar símbolos em palavras e palavras em frases, desenvolvendo sentido e lógica. Quanto mais a criança aprende, mais fácil se torna aprender; cada experiência, cada história ouvida, aumenta o repertório e a capacidade de associação de ideias.
E a leitura dialogada, especialmente com crianças pequenas, nos revela de forma precisa também o quanto elas realmente compreendem do mundo que lhes apresentamos. É comum os pais acreditarem que os filhos entendem tudo que lhes é dito! Mas muitas vezes essa compreensão não é tão clara quanto parece... A resposta da criança – um “não sei”, ou uma hesitação – não indica desinteresse ou má-fé; em boa parte dos casos, ela simplesmente não possui ainda a capacidade de verbalizar seu entendimento. Lembro-me de quando lia A casa sonolenta para meu filho. Perguntei se ele sabia o que significava o termo “sonolenta”. Ele respondeu que não sabia. Pedi então que demonstrasse com o corpo o que seria uma casa sonolenta, e ele fechou os olhos e se deitou. Portanto ele sabia o que era, mas ainda não conseguia expressar em palavras. Nesses momentos, nosso papel é explicitar o que ele não consegue verbalizar sozinho, construindo um elo entre experiência, linguagem e compreensão. Assim, a leitura dialogada funciona não apenas como ensino de vocabulário, mas como instrumento de reflexão e desenvolvimento da capacidade de expressão e entendimento. Essa prática nos ajuda a perceber melhor o nível real de compreensão de nossos filhos, afastando julgamentos precipitados de desinteresse ou preguiça. É um exercício de paciência e atenção, que revela a complexidade da mente infantil e a sutileza do aprendizado da linguagem.
Ler em voz alta é ensinar a criança a aprender. É mostrar, passo a passo, como organizar ideias, construir sentido e relacionar experiências
A leitura em voz alta é, portanto, muito mais que um simples expediente infantil. É uma poderosa ferramenta cognitiva. Momentos de leitura compartilhada entram na memória afetiva da criança, fortalecem sua inteligência e oferecem um banco de imagens, palavras e conceitos que servirão como referência para novas aprendizagens. Crianças com déficit de vocabulário, por outro lado, tendem a ficar prejudicadas em seu progresso acadêmico, não por preguiça ou desinteresse, mas porque a falta de contato com palavras, conceitos e conexões não a permite interpretar textos e compreender o mundo. A solução para dificuldades de interpretação de texto não está em exercícios repetitivos e isolados, mas na ampliação do vocabulário, na exposição a narrativas complexas e no diálogo constante sobre o que foi lido ou ouvido.
Mesmo após a alfabetização, a leitura em voz alta permanece essencial. A compreensão auditiva, em geral, passa à frente da leitura silenciosa. Uma criança ou adolescente pode escutar narrativas mais complexas do que consegue ler por conta própria, absorvendo informações, estruturando conceitos e adquirindo fluência antes de precisar decodificá-los na escrita. O ato de ouvir precede e prepara para a leitura, assim como cada leitura prepara para outra.
No fundo, ler em voz alta é ensinar a criança a aprender. É mostrar, passo a passo, como organizar ideias, construir sentido e relacionar experiências. É fornecer as chaves para que ela, um dia, faça esses links sozinha, compreenda textos complexos e expresse-se com clareza e criatividade. É, enfim, preparar não apenas leitores, mas pessoas capazes de compreender o mundo com atenção, sensibilidade e inteligência. Ler em voz alta para nossos filhos desde cedo não é apenas um hábito prazeroso: é um investimento profundo e seguro em sua inteligência, na sua capacidade de compreensão do próprio ser humano e no seu desenvolvimento moral. É uma ferramenta para ampliar horizontes, construir autonomia intelectual e, principalmente, nutrir o coração.
Pais, não negligenciem a leitura com seus pequenos! Sejam os pais para seus filhos guias e intérpretes, e os conduzam na aquisição da linguagem como quem fornece as ferramentas para que eles se tornem quem devem ser.
Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos




