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Cena de “Pinóquio por Guillermo del Toro”.
Cena de “Pinóquio por Guillermo del Toro”.| Foto: Divulgação

A clássica história de Carlo Collodi todo mundo conhece. Se ainda não leu em primeira mão, ao menos viu a versão da Disney, ou no mínimo ouviu falar. Ela começa às portas da oficina do Mestre Cereja, carpinteiro que, ao começar a trabalhar sobre um pedaço de pinho, depara-se com algo muito esquisito: a madeira parece viva, e dá gemidos conforme ele crava nela o seu cinzel. Ótima coincidência aparecer ali, naquele exato momento, um colega, apelidado jocosamente de “Polentinha” por conta da peruca loira, que vem lhe pedir justamente um pouco de material emprestado, e assim ele consegue livrar-se daquele estranho lenho falante. O “Polentinha” – ou melhor, Gepetto – o leva consigo, e é nele que esculpe o famoso Pinóquio, marionete que se move, anda e fala sem estar preso por cordames, mas que nem por isso pode ser considerado, ainda, um menino de verdade. Pinóquio é movido por cordames invisíveis, pelos desejos, paixões e pelas vozes do mundo, que o enganam e o tiram de seu caminho; e, para dominá-los, ele terá de esculpir-se a si mesmo, num nível mais profundo: esculpir para si um coração capaz de amar.

São muitas as suas desventuras, narradas uma a uma ao longo dos capítulos; porém, dentre tudo o que Pinóquio faz e deixa de fazer, e mesmo considerando todos os personagens fantásticos que ele encontra em suas andanças, o que marcou sua figura na memória das gerações, mais do que qualquer outra coisa, foi o intrigante fenômeno do nariz que cresce. O nariz de Pinóquio cresce, cresce e até floresce conforme ele vai desenvolvendo as suas mentiras, toda vez que ele não quer assumir a responsabilidade por suas maldades e deserções. A Fada precisa até mesmo convidar os amigos pica-paus para que lhe deem um trato, devolvam ao nariz seu tamanho original e permitam que o boneco se locomova normalmente outra vez.

Um dos motivos de As aventuras de Pinóquio terem se tornado um clássico perene é que a lição que ele encerra não é apenas para as crianças, mas para as crianças que todos fomos. Pinóquio é como nós, como todos nós, pois o homem não “nasce bom”, como tantos acreditam hoje, e todos nós somos, se não feitos inteiramente de madeira, ao menos “caras de pau”, e precisamos talhar a nossa conduta e o nosso interior para nos tornarmos gente de verdade. Assim como Pinóquio, todo mundo mente. “Todo homem é mentiroso”, diz o salmo, e “aquele que diz que não mente já está mentindo” nesse mesmo ato, diz o discípulo amado. Nós devemos, sem dúvida, nos esforçar por prezar sempre mais a verdade e fugir da mentira, devemos tentar nos livrar dela, lutar contra ela que, como diz o personagem de Lições de abismo, parece estar impregnada na nossa carne. Nós devemos, sobretudo, criar em nossa casa um ambiente favorável à verdade, em que ela seja, em vez da mentira, louvada e recompensada, e em que cada membro da família possa confiar nos demais. Todo mundo mente, mas nós temos de nos examinar sempre para não mentirmos para os nossos filhos, e eles – embora seu nariz não cresça, como o do Pinóquio, dando-nos um sinal visível da mentira – precisam de nossa ajuda para se tornarem meninos de verdade. Nem sempre teremos certeza se eles estão mentindo, e nem sempre estaremos por perto, mas devemos educá-los para que se tornem, por sua própria consciência, pessoas verdadeiras e confiáveis. Como fazer isso?

Assim como Pinóquio, todo mundo mente. Mas devemos criar em nossa casa um ambiente favorável à verdade, em que ela seja, em vez da mentira, louvada e recompensada, e em que cada membro da família possa confiar nos demais

Creio que a primeira coisa importante nessa questão seja identificar com clareza o que é, com o perdão do trocadilho, uma mentira de verdade. Isto porque as crianças, antes da idade da razão, podem dizer inverdades sem a intenção de mentir. Pode tratar-se, até os três ou quatro anos, apenas de confusões imaginativas, misturando memórias com criações e baralhando as noções de tempo, ou então imprecisões na maneira de se expressar. Porém, uma vez que estejam se aproximando da idade da razão, e chegue o momento em que optarem voluntariamente por distorcer os fatos, o que fazer? O que fazer quando um dos nossos filhos nos contar uma mentira? Como devemos conduzi-lo a abandoná-la, e a dizer a verdade?

O meu conselho, nesse aspecto, é bastante simples, e eu já o testei, de modo que posso enunciá-lo com toda a segurança: O antídoto contra a mentira é a confiança. Pode parecer paradoxal, à primeira vista, confiar no mentiroso de propósito, como se isso significasse acreditar na mentira, ou compactuar com ela. Mas este é mais um daqueles casos em que o paradoxo é apenas aparente, como na parábola do grão de trigo, que tem de morrer para germinar.

Quando mentimos, a mentira tem ressonâncias físicas imediatas, ela acarreta consequências corporais instantâneas – no que se apoia toda sorte de detectores de mentira. Nós sentimos um esfriamento no coração, um embrulho no estômago, algo apertar em volta da testa; em suma, sentimos um mal-estar geral por estarmos mentindo, enganando uma pessoa que, não tendo nenhum motivo para duvidar, está confiando em nós. Este é um mecanismo saudável e natural: é o sentimento de culpa, ou de remorso – e ele é bom. Seu funcionamento é um bom sinal, porque significa que a nossa consciência está desperta, e que estamos vendo que a mentira é algo ruim, uma vez que causamos um mal àquele que confiou em nós. É exatamente este sentimento, é esta reação natural de repugnância contra a mentira que nós devemos explorar no nosso filho que mente, para que ele próprio se incline a dizer a verdade.

Nosso primeiro impulso, ao ouvirmos algo que sabemos ou que temos boas razões para desconfiar que seja uma mentira, é o contrário: ficamos revoltados e apontamos a mentira; acusamos o mentiroso e exigimos que se emende; queremos justiça. Como dizia Santo Agostinho: “Conheci muitos com o desejo de enganar, mas, com o desejo de ser enganado, ninguém”. Entretanto, o efeito dessa ação, no mentiroso, não é fazê-lo se inclinar para a verdade, mas para nós, que, com esse gesto, imediatamente nos tornamos adversários, dos quais ele precisa se defender. O foco muda logo, do sentimento de remorso, para o sucesso do convencimento, da luta por levar a mentira até as últimas consequências e safar-se daquela derrota, daquela humilhação. E assim, num verdadeiro paradoxo, acabamos estimulando a mentira, fomentando a busca por aprimorar a história contada, com argumentos e provas fictícias. A desconfiança dilui o remorso, e nós viramos um empecilho entre o mentiroso e a verdade.

Por isso eu sugiro que nós nos fiemos no funcionamento natural das coisas, e como que nos entreguemos voluntariamente nas mãos desse algoz. É mais salutar, para a educação da criança, nós nos deixarmos enganar um pouco, para que permaneça operante nela a sensação de remorso, o efeito orgânico da sua mentira, para que ela possa perceber, por contraste, o valor da confiança. Ao acreditarmos e depositarmos nela a nossa confiança, mesmo que não seja a primeira vez que mente, pode ser que a levemos a pensar e a se questionar: “Como ela pode estar acreditando em mim de novo? E eu mentindo... Ela me perdoou, e eu menti outra vez”. Enquanto a nossa acusação teria enrijecido o intento de mentir, a nossa confiança, ao contrário, contribui para sensibilizar ainda mais o seu coração, e oferece a ela a possibilidade de se ajustar a essa expectativa. “Minha mãe está acreditando em mim de novo. Talvez eu seja mesmo uma pessoa confiável.” Fazer isso numa situação de mentira é muito mais eficaz do que revelar a verdade, rotular o filho de mentiroso e desconfiar dele ainda mais nas próximas situações que se apresentarem. Pode demorar um pouco, mas, remoendo aquele sentimento ruim, e sofrendo com o triunfo aparente da falsidade, as próprias crianças desejarão voltar atrás e, sabendo que confiamos nelas, ficarão à vontade para nos contar – sem medo de que as rotulemos, já que nunca fizemos isso antes.

É claro que isso não significa realmente acreditar na mentira, sermos realmente ingênuos a ponto de agirmos conforme ela até suas últimas consequências. Isso, além de tolice, seria perigoso – e até mesmo um pouco sádico com a criança. Tendo certeza absoluta de que a criança está mentindo, nós podemos, sem acusar, nos “colocar à disposição” para que fale a verdade, questionando, pondo em perspectiva, como que “abrindo a narrativa” para que ela tenha a oportunidade de corrigi-la. “Pelo que eu vejo, por este e aquele sinais, não me parece que tenha sido bem assim que aconteceu”, ou “não pode ter sido exatamente assim como você disse. Você tem alguma coisa para contar para a mamãe?”, ou “Será que não foi um pouco diferente disso?” E eles terão a oportunidade de se livrar do peso da mentira e dizer a verdade, sabendo que o peso desta será um jugo suave. Pois esse pequeno gesto de coragem e de humildade, em vez de uma punição, merece o reconhecimento: “Que bom que você conseguiu falar”, “que bom que disse a verdade”. Como não lembrar do episódio do pequeno George Washington: Ele, uma vez, ouviu da mãe a história de um menino que havia destruído as roseiras da casa e que, ao ver outro ser acusado, assumiu corajosamente a culpa dizendo “fui eu!”, para depois ser premiado por sua grande honestidade. No dia seguinte, lá estava o pequeno George, pisoteando as roseiras da mãe e gritando “Fui eu! Fui eu!” Se não estou lembrando mal a anedota, acho que a mãe se resignou a parabenizá-lo, antes de explicar...

É mais salutar, para a educação da criança, nós nos deixarmos enganar um pouco, para que permaneça operante nela a sensação de remorso, o efeito orgânico da sua mentira, para que ela possa perceber, por contraste, o valor da confiança

Em suma, não há problema em nos deixarmos enganar algumas vezes, porque isso faz parte de uma estratégia educativa, de um pensamento que visa, com esse pequeno sacrifício, com esse suportar pequenas mentiras, a uma coisa bem maior. Não será assim para sempre; é apenas uma etapa na formação dos nossos filhos, e nós a estaremos acompanhando sempre de perto, passo por passo.

Agora, nós, que não estamos isentos da semelhança com Pinóquio, nem excluídos das frases bíblicas, nós precisamos ter o mesmo apreço pela verdade que queremos que nossos filhos tenham, e exercitar a mesma humildade de voltar atrás e reconhecer nossas mentiras. Do contrário, seria patético os pais não quererem que os filhos mintam para eles, ao passo que eles mentem para os filhos o tempo todo – dizendo que vão voltar logo, quando, na verdade, só voltarão à noite; dizendo que não tem biscoito no armário, quando na verdade tem e só não querem que a criança coma; dizendo que sorvete ou refrigerante faz mal só porque não têm dinheiro para comprar naquela hora; dizendo que tal coisa é perigosa, quando apenas não querem que a criança faça no momento... Ou ameaçando com castigos que nunca são aplicados. Se fazem isso, como podem punir severamente as crianças quando mentem? Não apenas não faz sentido, como pode ter um duplo efeito maléfico: além de ensinar que mentir é aceitável em determinadas situações, como um meio justificado pelos fins, pode fazer com que as crianças percam a confiança em seus pais, e escondam ainda mais suas mentiras.

Isso não deve ser confundido com uma necessidade de dizer tudo para os nossos filhos, pois não mentir não significa dizer tudo, e falar a verdade também não significa ser brutal, imprudente, indiscreto. Quando queremos dizer a verdade, nosso objetivo é que ela seja de fato compreendida, o que precisa levar em conta a mentalidade do ouvinte. Apenas soltar “frases verdadeiras” não é necessariamente dizer a verdade, se a pessoa não tiver condições de compreender ou se houver chances de ela entender tudo errado. Por exemplo, quando uma criança de quatro anos pergunta algo como “de onde vêm os bebês?”, dar-lhe uma descrição pormenorizada do intercurso carnal não será, sob nenhum aspecto, dizer-lhe “a verdade”, pois isso não fará para ela o menor sentido, embora nós saibamos que uma coisa tem algo a ver com a outra. O fato é que nós também não sabemos, exatamente, como se dá esse grande mistério, e o mesmo vale para muitas outras ocasiões: em boa parte dos casos nós não sabemos, de fato, qual é a verdade, ou toda a verdade.

O que nós precisamos é ter um profundo comprometimento com a verdade, em todos os seus níveis: um contato e uma relação perpétua com ela, buscando-a, sempre, em todas as situações, dentro e fora de nós. Assim nós seremos exemplos luminosos para os nossos filhos, e modelos de humildade para com o que nos transcende infinitamente. Eles viverão num ambiente que leva em conta que “todo mundo mente”, e por isso ninguém deve ser julgado, mas todos devem e são perpetuamente convidados a trocar a mentira pela verdade. Todos nós, crianças e adultos, estamos naturalmente dispostos a atender a uma expectativa, a honrar a confiança que é depositada em nós. Por isso, mais que acusar, punir e rotular, mais que estabelecer no lar o regime da desconfiança e fiscalizar tudo o que nossos filhos dizem, faça uma aposta alta: confie neles, deposite sobre eles a expectativa de que sempre dirão a verdade, mesmo que para isso você precise engolir umas pequenas mentiras. Pode parecer um investimento ingrato no início, como também parece, na história de Pinóquio, que aquele pedaço de madeira falante é um caso perdido. Mas confie que o seu amor, sob a forma da confiança, vai trabalhar secretamente na alma deles, e logo, um belo dia, vocês verão juntos no canto da sala a antiga carcaça desengonçada, e ao seu lado estará, radiante, com o brilho dos olhos a refletir nas lágrimas, o seu menino de verdade.

Conteúdo editado por:Marcio Antonio Campos
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