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Verdadeira amizade
| Foto: Bigstock

Diferente de outros animais, a criança, desde o momento de seu nascimento e por muitos anos, é totalmente dependente de seus pais. Muitos mamíferos superiores saem andando tão logo deixam a barriga de suas mães, e muito rapidamente aprendem a se virar sozinhos, a caçar — ou, no caso das aves, a voar. A criança, ao contrário, não sobreviveria sem conservar uma longa conexão com seus progenitores, ou, em geral, com os adultos. Entretanto, essa inferioridade física, da criança com relação ao animal, é compensada, ou, melhor dizendo, é infinitamente superada por outra diferença, que marca a superioridade absoluta dos seres humanos entre os outros animais, e a sua diferença específica. A criança revela, muito cedo — meses, talvez semanas, com variações que dependem da genética e das formas de convivência —, que é alguém. Não apenas lida com as coisas, e se serve delas para manter sua sobrevivência biológica; ela está, também, diante das coisas e do mundo, está presente e as tem presentes para si. Dá-se, entre o ser humano, desde bebê, e o mundo que o rodeia, um curioso encontro ou enfrentamento. O ser humano é pessoa.

As crianças, e nós também, podemos gostar muito dos animais, e ter um grande gosto em tê-los por perto e em viver na sua companhia, em brincar com eles, acariciá-los e receber suas carícias. Mas, embora este seja um ponto sensível hoje em dia, muito mal compreendido, e que gera algumas cenas aberrantes, nós os vemos de maneira muito distinta de como vemos as pessoas. E a criança desde logo sente-se, com estas, apesar da enorme diferença que a separa das adultas, como entre iguais, em comunidade ou afinidade. Muito logo distingue entre homens e mulheres — o que não faz tão facilmente com o sexo dos animais —, e reconhece, na outra criança, um especial “semelhante”, bem distinto das pessoas grandes.

Mais que uma formação da personalidade, há uma descoberta dela. A criança vai tomando posse de sua pessoa, da pessoa que é desde o princípio; e isso depende, em parte, das outras pessoas, na medida em que ela é vista, tratada, vivida pelos outros como pessoa. Ao reconhecer o outro como alguém, como um “tu”, ela se descobre igualmente alguém, um “eu”. E esse fenômeno não tem a ver com a fisiologia, nem com a biologia; ele é, por assim dizer, biográfico, é um fato da vida daquela criança como uma pessoa — que começa, é verdade, com uma escassez de recursos para se realizar, mas que será suprida justamente pela educação que os pais vão lhe dar. Se a condição pessoal não é adquirida, mas tão-somente descoberta, e progressivamente possuída, logo se conclui que é preciso tratar a criança como uma pessoa desde sempre, mesmo desde o berço; e isso faz, de quebra, com que seu amadurecimento seja mais rápido e mais consistente.

Se quisermos nos fiar da linguagem da religião, podemos dizer que nenhum dos seres vivos, com exceção do homem, foi criado “à imagem e semelhança de Deus”, e por isso a paternidade e a maternidade humana, mesmo sendo biologicamente semelhantes às de outros seres da natureza, têm em si mesmas, de modo essencial e exclusivo, uma “semelhança” com Deus, ou seja, é atravessada pelo seu aspecto pessoal, sobre o qual se funda a família, concebida como comunidade de pessoas unidas no amor. Por isso o lugar perfeito para que a criança cresça como pessoa, enxergando-se como alguém, e assim aprendendo a ver os outros, é, sem dúvida, o ambiente familiar. É ali que as crianças são tratadas por si mesmas, por quem são. E é ali também que receberão uma educação própria de pessoas, sendo amorosamente treinadas nos bons hábitos, com a paciência e a segurança que lhes proporcionamos — assim como uma aula de natação, numa piscina rasa, prepara os novatos para, só mais tarde, enfrentarem o mar bravio. Não se aprende a nadar no mar bravio, porque o erro seria fatal. E nisso nos contrapomos ao “mito”, corrente hoje na mente das pessoas desavisadas e nos discursos de pedagogos e políticos (às vezes é difícil diferenciar um do outro), da necessidade da socialização precoce.

Por isso o lugar perfeito para que a criança cresça como pessoa, enxergando-se como alguém, e assim aprendendo a ver os outros, é, sem dúvida, o ambiente familiar

Entretanto, isso não significa, de modo algum, que as crianças não devam conviver com outras iguais, que o convívio entre os pequenos não seja benéfico, e que eles não vão, de fato — pouco a pouco, conforme avançam em idade —, desenvolver, nessas interações, habilidades sociais. Mais que isso: nesses encontros com outras crianças, situações de brincadeiras e outras, elas poderão testar e aguçar, como em “experimentos controlados”, os valores que tenham aprendido em casa. Elas irão firmar e solidificar, nesses pequenos confrontos com os outros, progressivamente, aquela consciência de “eu”, também progressivamente conquistada, num justo compasso. E não devemos negligenciar, como disse há pouco, que a criança reconhece na outra um “semelhante”, que é uma pessoa como ela, mas que tem as mesmas limitações e o mesmo status relativo, bem distinto das pessoas grandes, e que ela pode aproveitar essa valiosa relação para aprender muitas coisas. É desde a infância que devemos educar nossos filhos para a amizade.

Admitamos que não é fácil, nem para nós adultos, enxergar com clareza o que é uma verdadeira amizade, ou, como dizia o filósofo Plutarco, “como distinguir o bajulador do amigo”; mas não só o bajulador: é comum que, ao longo de nossa vida — desde a infância, passando pela adolescência e juventude, até a vida adulta (e certamente na velhice ainda mais) —, vamos aprendendo a distinguir melhor também aquele que só quer nos diminuir para se escorar em nós, aquele que não é leal quando não estamos presentes, o que será nosso amigo apenas na conveniência — na alegria e na riqueza — ou apenas quando for um benefício para si, ou o companheiro que só quer parceria para o erro, para o prazer. De fato, a Bíblia, no livro dos Provérbios, por exemplo, traz inúmeros conselhos de sabedoria para fazer essas distinções, e diz, por fim, que “quem encontrou um amigo, descobriu um tesouro”.

Há uma série de características nas pessoas, sobretudo temperamentais, que propendem para a simpatia que sentem pelas outras, e a simpatia está na base da amizade. Para alguns é mais fácil a abertura e a efusão, e outras são marcadamente mais constantes e fiéis. Algumas pessoas mais sociáveis — as de temperamento quente, por exemplo — costumam ter bastantes “amigos” no sentido atual dessa palavra, que acabou ficando bastante inflacionada, abrangendo todo tipo de convívio, de colegas e de conhecidos. Mas, se levarmos o conceito a sério, como faziam os antigos, e nos perguntarmos quem são nossos verdadeiros amigos, veremos que as amizades inteiriças, plenas, intensas, não são muito frequentes. Ou seja, é com muito poucos que chegamos à intimidade, a um contato verdadeiramente pessoal, de um para um.

Acontece, também nesse encontro, uma espécie de descoberta: a pessoa se abre e revela alguma dimensão ou faceta sua que guarda alguma conexão conosco, com nossos projetos mais autênticos. Cada pessoa estimula determinadas coisas nas demais: coisas profundas ou frívolas, inferiores ou superiores, boas ou más, verdadeiras ou falsas, e recebe de volta, nessa relação, as dimensões ou facetas que favoreceu. Se sua influência for benéfica, no sentido de estimular e reforçar o que o outro realmente é ou deveria ser, será uma boa e verdadeira amizade; se seu efeito for o contrário, afastando o outro de si mesmo, será o contrário de uma amizade, será a sua subversão. Quem nos tenta a não sermos quem somos é uma espécie de diabo.

Mas, se levarmos o conceito a sério, como faziam os antigos, e nos perguntarmos quem são nossos verdadeiros amigos, veremos que as amizades inteiriças, plenas, intensas, não são muito frequentes

Aristóteles chamou essa verdadeira amizade de philia — listada depois por C. S. Lewis como um dos quatro amores —, e tem relação com o bem do próximo, com seu crescimento e aperfeiçoamento como pessoa, e não somente com um gostar, com uma cooperação ou uma busca conjunta pelo prazer. Esse amigo nos permite desfrutar de sua companhia sem destruir a nossa solidão. Estamos juntos sem que deixe de fluir a nossa vida interior, a vida solitária de cada um. Essa amizade, que não se reduz ao patamar social ou psíquico, é profunda, e toca o núcleo das pessoas. Consiste no encontro de duas pessoas enquanto tais, nessa condição única, que, como dissemos, temos desde sempre, de sermos abertos para o futuro. Essa amizade, sim, é intrinsecamente duradoura, e tem “vocação de permanência”. Ela é, portanto, um amor que se dá numa convergência de buscas, de ideais, numa convergência de projetos. É o que diz a famosa frase do poeta Salústio (86–34 a.C.), relembrada depois por Santo Agostinho e por São Tomás: “Idem velle atque idem nolle, ea demum firma amicitia est”, isto é, “só há amizade firme quando se querem as mesmas coisas e as mesmas coisas se não querem”.

É uma “identidade de eleição”, como chamam os filósofos: os amigos vivem uma convergência no futuro que desejam, uma convergência de finalidade, de fim último, ou seja, de felicidade — e isto de fato, na busca concreta por essa felicidade, que se materializa dia a dia nas ações, e não só da boca para fora, num discurso ou numa ideologia, o que exige, também, uma convergência de profundidade. Os nossos amigos devem querer para nós o mesmo bem que nós queremos para eles. E, se temos como objetivo a fundação de uma família, e escolhemos a família como caminho para a nossa felicidade, que transcende qualquer contentamento que possamos ter nesta vida — em outras palavras, se vivemos pelo nosso cônjuge e por nossos filhos, para que enfim tenhamos todos a felicidade eterna —, os nossos amigos devem querer e agir necessariamente em vista do bem das nossas famílias, que certamente vêm antes daquela própria amizade. Se a hierarquia dos valores e dos bens não estiver clara para esse amigo, ele vai nos afastar de nosso ideal, e assim estará se tornando, nesse mesmo ato, menos nosso amigo. Se o amigo deve fomentar e tirar o melhor de nós, então fará, ainda que indiretamente, com que nós sejamos melhores esposas e esposos, melhores mães e pais — com que sejamos melhores para nossa família, e enfim uma família melhor. Será apoio na dificuldade, com quem poderemos dividir um peso; vai nos tirar do erro ou nos confirmar na verdade, quando a dúvida ou a confusão tomarem conta de nós; será exemplo, em que poderemos colher virtudes que não temos; e com ele viveremos uma genuína comunhão na alegria. Por isso é tão importante cercar nossa família desses dignos amigos, referências adultas que queremos para os nossos filhos, por serem como nós no que temos de bom, e melhores que nós em nossas falhas, e que podem muito bem ser, assim, outros pais: os seus padrinhos.

Às vezes é triste aceitar o fim de uma amizade, da qual guardamos boas memórias, e com a qual tenhamos aprendido muitas coisas em momentos importantes da vida. Mas não devemos sacrificar nossos valores e ideais mais altos no duvidoso altar de um apego. Pode ser que, tendo crescido ou esclarecido algo em nossa vida, estejamos, entretanto, nos furtando a reconhecer que aquela não era de fato uma amizade, uma philia; ou a aceitar, simplesmente, que algum dos dois amigos mudou, mudou de finalidade, mudou o norte para o qual aponta sua bússola em busca da felicidade, e que isso não é coisa pouca. A vida é mesmo uma jornada longa, e nem todos ficam juntos até o fim do caminho... E, já que lembramos tantos filósofos, vale também o que disse Cícero, no seu pequeno livro Sobre a amizade: “Estão perigosamente enganados os que julgam que os erros podem correr à solta na amizade; ela nos foi dada pela natureza para ser a auxiliar das virtudes, e não a companheira dos vícios, para que possibilite à virtude atingir a perfeição”.

Assim mostraremos aos nossos filhos, pelo exemplo, a natureza da verdadeira amizade, o seu critério, a lealdade que ela requer. E facilmente os orientaremos, também, a procurar os seus amigos, dando-lhes o devido valor, e a rejeitar as falsidades. Devemos, sim, conhecer a família dos amigos dos nossos filhos, e poderemos intervir, com muita prudência, quando algum relacionamento se mostrar nocivo. Mas o principal é ensiná-lo a fazer transbordar, fora de casa, o amor ao próximo que terá aprendido em casa, sendo humilde, tolerando e buscando compreender as diferenças nos outros, dedicando-se e sacrificando-se pelos bons amigos, socorrendo-os em sua fraqueza, defendendo-os da injustiça, da maledicência, ou de algum perigo; alegrando-o na tristeza, acompanhando-o na genuína alegria. Devemos cuidar sempre para que busquem, juntos, nossos filhos e seus amigos, o verdadeiro bem em cada situação de sua vida infantil ou juvenil, e que se ajudem nessa grande aventura que é crescer. Assim poderão guardar, para a vida adulta, uma longa e vigorosa amizade — o mais raro e valioso tesouro.

Conteúdo editado por:Jônatas Dias Lima
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