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Queda de homicídios se consolida em 2022 e gera prova de fogo para governo Lula
Presidente Lula e ministro da Justiça e Segurança Pública, Flávio Dino. Governo ainda não trouxe diretrizes claras para enfrentamento à criminalidade.| Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil

Quais são as prioridades na política criminal do atual governo Lula? Combater a corrupção? Combater o crime organizado? Reduzir o número de assassinatos? Não, nada disso.

Antes de responder as perguntas, um passo atrás. Quando assumi o Ministério da Justiça e Segurança Pública, defini, desde logo, minhas prioridades. Direcionamos a estrutura do MJSP para combater a corrupção, o crime organizado e a criminalidade violenta. As atribuições do MJSP são muitas, mas política pública demanda foco e definição de prioridades. Certa feita, recebei no ministério um experiente senador e ex-governador que, em conversa franca, sugeriu-me: “Ministro, escolha três ou quatro medidas principais e foque tudo nelas, a maior parte do tempo você vai passar resolvendo crises e impedindo outros de fazerem a coisa errada”. Foi um sábio conselho e que se mostrou realidade – aliás, uma dessas crises precipitou minha saída do Ministério da Justiça.

Com as prioridades definidas, fomos para cima das lideranças do crime organizado, isolando-as em presídios federais de segurança máxima; mudamos o regime prisional nos presídios federais para impedir que essas lideranças continuassem a comandar o crime de dentro deles; modernizamos a legislação e a execução do confisco e venda de ativos criminosos; ampliamos os quadros da Polícia Federal, Polícia Rodoviária Federal e Polícia Penal Federal; revitalizamos o Banco Nacional de DNA de criminosos, um poderoso instrumento de investigação de crimes; e fortalecemos as forças tarefas policiais encarregadas da Operação Lava Jato, entre outras medidas.

Enviamos uma proposta legislativa poderosa ao Congresso: o projeto de lei anticrime, que, se tivesse sido aprovado integralmente, teria representado uma revolução no combate ao crime e à impunidade no Brasil. Ainda assim, partes relevantes dele foram aprovadas, como a que prevê a execução imediata das sentenças do Tribunal do Júri, competente este para julgamento basicamente de assassinatos. Recentemente, o STF declarou essa medida constitucional, o que fará com que alguns juízes refratários à regra passem a adotá-la. É uma medida importante contra a impunidade de assassinatos no Brasil, quiçá fosse estendida a outros crimes.

Parte de nossas autoridades defende uma espécie de abolicionismo penal e que a solução para o problema dos presídios reside no seu esvaziamento, com a imposição cada vez mais de penas alternativas à prisão e com a soltura de boa parte dos condenados

É difícil definir com precisão as causas da queda da criminalidade, mas é fato que, em 2019, ano de minha gestão no MJSP, os indicadores criminais tiveram a maior queda da história. Assassinatos caíram 22% segundo os dados oficiais: foram 45.503 em 2019, número elevado, mas inferior aos 57.956 em 2018, segundo dados do Atlas da Violência. A tendência de decréscimo manteve-se desde então, embora 2020, ano de pandemia e com parcial afetação dos serviços policiais, tenha registrado uma alta porcentualmente pequena. Outros crimes, como roubos, apresentaram queda igualmente significativa no mesmo período. Acredito que a mudança do discurso governamental, com a enfâse de que o crime deveria ser reprimido, e as políticas públicas que adotamos tenham contribuído para a queda dos crimes.

Em 2023, as prioridades da Justiça e segurança pública sob o governo Lula são outros. No que interessa mais ao cidadão comum, as palavras de ordem são “desencarceramento” e “descriminalização”. No que interessa ao governo, a ordem é focar na repressão aos atos antidemocráticos, com a vagueza que gera risco de reprimir a oposição.

É verdade que os presídios brasileiros são um problema e parte deles funciona como escola do crime. O remédio necessário é melhorá-los para que sirvam de fato para neutralizar a capacidade do criminoso de cometer crimes, para punir o criminoso como instrumento de justiça e para, nos limites do possível, reabilitar o criminoso para que possa, cumprida a pena, retornar ao normal convívio social. Parte, porém, de nossas autoridades, influenciada por um idealismo ingênuo, defende uma espécie de abolicionismo penal e que a solução para o problema dos presídios reside no seu esvaziamento, com a imposição cada vez mais de penas alternativas à prisão, como prestação de serviços, e com a soltura de boa parte dos condenados. Já ouvi de uma autoridade em Brasília que o ideal seria colocar em liberdade cerca de 30% dos presos. O pior é que ela falava com sinceridade.

O problema é que este raciocínio ignora o caráter preventivo da pena. A prática do crime, salvo o passional, é decorrente de uma decisão racional, onde são sopesados riscos e oportunidades. Afrouxar o risco, reduzindo as penas ou soltando os presos, terá como efeito provável o aumento da criminalidade em um país cujos indicadores criminais já são bastante elevados.

É provável que essa linha de pensamento esteja por trás da intenção de parte do STF de descriminalizar o porte de droga de baixa quantidade. Alguns ministros entendem que, para diferenciar o consumidor e o pequeno traficante, faz-se necessário fixar uma quantidade de drogas mínima para caracterizar este último. A medida evitaria a prisão do consumidor e permitiria a focalização da atuação policial para o grande traficante. Há dúvidas, porém, se este seria mesmo o resultado, pois o distribuidor varejista, nas ruas, faz parte de uma mesma cadeia de fornecimento dominada por organizações criminosas. Além disso, o distribuidor varejista dificilmente porta uma quantidade expressiva de drogas, mantendo em sua posse o necessário para pequenas vendas e mantendo quantidades maiores em uma base escondida. A decisão judicial em formação pode ter o efeito de facilitar a atuação nas ruas do distribuidor varejista de drogas, aprofundando os males trazidos pelas drogas à saúde pública e deteriorando ainda mais os ambientes urbanos. Penso, respeitosamente ao STF, que cabe exclusivamente ao Congresso eventual medida de descriminalização da posse ou porte de drogas em pequenas quantidades. Eu sou contra, mas, de todo modo, isso deve ser uma decisão dos representantes eleitos.

O mais assustador em relação à política criminal do governo Lula é que se desconhecem quaisquer iniciativas para combater à corrupção. As tentativas de demonização da Lava Jato e de seus integrantes, bem os ataques à Lei das Estatais, bem revelam onde está o governo Lula em relação ao combate à corrupção, ou seja, em lugar nenhum. Sobre o  enfrentamento ao crime organizado também quase nada se ouve no discurso governamental e ele está relegado a segundo plano. Também não se conhecem, até agora, quaisquer iniciativas mais relevantes direcionadas contra as poderosas organizações criminosas brasileiras.

O que o cidadão comum deseja é viver em um país seguro, no qual ele não seja assaltado no percurso de sua casa para o trabalho, no qual a sua residência e as suas propriedades permaneçam protegidas contra os criminosos

O foco do governo Lula tem sido o combate aos assim denominados “atos antidemocráticos”. É natural, de verdade, que o 8 de janeiro gerasse uma reação das forças de segurança. É também certo que aqueles que invadiram e depredaram as sedes dos três poderes devem ser punidos na medida de sua culpa individual (e não desproporcionalmente). Mas não é razoável que, passados oito meses, sem o menor risco atual ao regime democrático, a repressão a esses atos antidemocráticos continue a ser uma obsessão e a prioridade da política de Justiça e segurança do país. Dias atrás, fiquei atônito ao ouvir o diretor da Polícia Federal orgulhoso por afirmar-se responsável pela prisão de quase 2 mil pessoas no dia 8 de janeiro, e ao afirmar que haveria ainda muito mais operações relacionadas a esses fatos. O excesso de repressão, resvalando contra pessoas apenas críticas ao governo, lembra os equívocos de outros períodos históricos, como a perseguição, nos Estados Unidos, à assim chamada “ameaça vermelha” ao fim da Primeira Guerra Mundial, em um mundo então chocado pela ditadura bolchevique, e, décadas depois, durante o macartismo. Quantas fases da Operação Lesa Pátria ainda teremos e quando o governo Lula perceberá que as prioridades da segurança pública, para o brasileiro, continuam ser o combate ao crime violento e à criminalidade organizada?

O que o cidadão comum deseja é viver em um país seguro, no qual ele não seja assaltado no percurso de sua casa para o trabalho, no qual a sua residência e as suas propriedades permaneçam protegidas contra os criminosos e, principalmente, nas periferias, no qual ele não fique sujeito à violência das gangues e organizações criminosas dedicadas à extorsão e ao tráfico de drogas. Por ora, não se pode afirmar que os indicadores criminais irão piorar, mas este é um resultado provável do afrouxamento do combate ao crime comum e à criminalidade organizada. Doutro lado, o cidadão comum não vê atualidade em ameaças à democracia vindas do anterior governo ou de seus apoiadores, antes vislumbra algumas nos riscos de censura e de perseguição política decorrentes das ações do presente governo. O Brasil do governo Lula tem estranhas prioridades na política de Justiça e segurança, e não vejo que o cidadão comum tenha razões para estar satisfeito.

Conteúdo editado por:Marcio Antonio Campos
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