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Plantas de maconha.
Plantas de maconha.| Foto: JR Byron/Pixabay

Escrevo este artigo sobre o combate às drogas com a experiência de 22 anos de magistratura e, ainda, de um período como ministro da Justiça. Passaram pela minha mão investigações e ações penais contra grandes traficantes de drogas nacionais e internacionais, a exemplo de Fernandinho Beira-Mar e Lucio Rueda Bustos, e contra líderes locais do tráfico como Marcelo Stoco. No Ministério da Justiça e Segurança Pública, conhecemos a fundo as organizações criminosas brasileiras que fazem do tráfico de drogas a sua fonte principal de renda. Investimos na prisão e isolamento das lideranças, confisco de bens e cooperação internacional.

Se, no passado, havia alguma visão romântica sobre o tráfico de drogas, com pequenos traficantes trabalhando sozinhos e fornecendo drogas para a diversão de usuários ocasionais, em um espírito rebelde contra o sistema, ela não mais existe. O mercado do tráfico de drogas logo foi concentrado em grupos e organizações determinadas, com condições de estruturar a cadeia de fornecimento, muitas vezes internacional, e de lavar a enorme quantidade de dinheiro dele decorrente. “A produção ilícita de drogas não é um incidente esporádico ou isolado, mas uma contínua, apesar de ilegal, empresa de negócios”, como já reconhecia a Suprema Corte norte-americana em US v. Russell, de 1973.

Junto com a venda, a violência. A disputa pelo comércio ilícito entre concorrentes e os acertos de dívidas entre fornecedores e usuários, que não podem ser levados à Justiça, são resolvidos com pólvora e sangue. A maioria dos assassinatos no Brasil ocorre nas regiões metropolitanas das grandes cidades e está associada ao tráfico de drogas. Quanto aos usuários, o lado rebelde do uso de drogas foi há muito ultrapassado pelas consequências danosas à saúde, com dependência, declínio físico e mental, e mortes ocasionais por overdose.

O distribuidor varejista, aquele que vende a droga ao consumidor final, nas esquinas ou becos das grandes cidades, tem por praxe portar pessoalmente somente pequenas quantidades de drogas e renovar o seu estoque periodicamente

Nesse contexto, causam surpresa os movimentos em favor da legalização do comércio e uso de drogas, seja no Brasil ou em outros países. Vislumbra-se uma clara contradição com movimentos que, na direção oposta, visam estabelecer maiores restrições ao uso de drogas legais e ao tabaco. Assisti recentemente à série O império da dor, que relata os males provocados pelo uso excessivo, nos Estados Unidos, de remédios à base de opioides. A reprovação aos abusos da indústria farmacêutica nesse caso é universal. De forma semelhante, a indústria do tabaco é usualmente taxada de vilã pelos malefícios causados à saúde dos usuários e a dependência decorrente do uso dos produtos. Se assim é quanto às drogas legais, qual o motivo da recente tolerância quanto às ilícitas?

O STF discute atualmente, em recurso com repercussão geral, a descriminalização do porte de drogas para uso pessoal. O julgamento ainda não foi finalizado, mas encaminham-se duas proposições no sentido de que: a) o porte de maconha em pequena quantidade para uso pessoal não seria crime por violação ao princípio da privacidade; b) presume-se que a maconha destina-se ao uso pessoal quando apreendida em pequenas quantidades (está ainda em discussão o montante).

Há dois problemas com esse entendimento. Primeiro, a quantidade de droga apreendida pode ser relevante para distinguir traficante e usuário, mas não é determinante. É claro que a apreensão de quantidades significativas, de quilos a toneladas, leva à conclusão de que o portador não é usuário, mas traficante. O mesmo não pode ser dito em relação a pequenas quantidades. Afinal, o distribuidor varejista, aquele que vende a droga ao consumidor final, nas esquinas ou becos das grandes cidades, tem por praxe portar pessoalmente somente pequenas quantidades de drogas e renovar o seu estoque periodicamente. Nenhum pequeno varejista sai às ruas com um quilo de droga por medo de perder a carga em decorrência de prisão.

Embora possa se pensar que prender um pequeno varejista seja dispensável, não podemos esquecer que ele está na ponta da cadeia de fornecimento de uma grande organização. Sua prisão não é efetiva para desmantelar a organização, mas não se pode dar imunidade penal a membros dela caso se pretenda combatê-la. Além disso, a prisão de peixes pequenos pode levar a peixes maiores e a grandes tubarões, utilizando-se técnicas especiais de investigação. De todo modo, a questão que se coloca é se, definida a distinção entre usuários e traficantes pela quantidades da droga apreendida, não estaríamos, na prática, liberando o tráfico de drogas pelos distribuidores varejistas em todas as ruas e esquinas do Brasil.

Segundo, pode-se argumentar que a questão acima deve ser decidida por representantes eleitos e não por juízes togados. O Congresso, em 2006, distinguiu o tratamento penal dado a traficantes e usuários. Pela lei atual, o usuário surpreendido com drogas comete um crime, mas não está sujeito à pena de prisão. Já o traficante é tratado com todo o rigor da lei. É uma distinção sábia, pois evita a prisão do usuário sem legalizar o consumo. Qualquer mudança desse regime, com a descriminalização do porte para uso pessoal, deveria passar pelo Congresso. Não são os juízes ou os ministros do STF as autoridades legítimas para estabelecer políticas públicas em temas tão sensíveis, como a legalização do uso de drogas ilícitas. Não que os legisladores sejam melhores que os juízes ou vice-versa. Ambos erram e acertam em suas decisões. Legisladores, porém, foram eleitos e a população, descontente com seus votos, pode demiti-los periodicamente. É a submissão dos legisladores ao sufrágio periódico que lhes dá legitimidade para serem a fonte primária na formulação das políticas públicas. Já os juízes são vitalícios e não estão sujeitos à aprovação ou reprovação periódica nas urnas. Essa garantia é, na prática, uma desvantagem em relação aos legisladores no que se refere à responsabilidade primária na formulação de políticas públicas. A soberania pertence apenas ao povo, que a exerce através do processo eleitoral. Esse é falho, possui vícios, mas é o que temos.

Sou pessoalmente contra a legalização do consumo ou tráfico de drogas ilícitas. Não acredito que um passo nessa direção diminuirá a violência associada às drogas ou melhorará a saúde pública

A falta da submissão dos magistrados a eleições periódicas recomenda a autocontenção judicial em temas sensíveis. Lembro frase famosa do justice Robert Jackson, da Suprema Corte norte-americana: “nós estamos sempre certos porque damos a última palavra, mas não damos a última palavra porque estamos sempre certos”. Juízes e magistrados erram e um Supremo Tribunal Federal, porque pode errar por último, deve agir com certo ceticismo saudável em relação ao acerto de suas próprias premissas. Também o Congresso erra, mas pelo menos seus erros podem ser censurados pelo eleitor soberano.

Sou pessoalmente contra a legalização do consumo ou tráfico de drogas ilícitas. Não acredito que um passo nessa direção diminuirá a violência associada às drogas ou melhorará a saúde pública. Desencarceramento em massa levará ao aumento da criminalidade. Sou cético ainda quanto à possibilidade de distinguir o usuário do traficante com base na pequena quantidade da droga apreendida. De todo modo, governar é experiência, tentativa e erro fazem parte da grande aventura humana. Admito que talvez eu esteja errado e que a melhor política pública em relação às drogas seja a legalização. Ainda assim, errar nessa política pública compete ao legislador e não ao juiz. Desconheço país no qual tenha vindo do Judiciário a legalização do porte de drogas para consumo. Se for o caso, é a província do Legislativo fazê-lo, já que teria de ser acompanhado por uma reformulação de políticas públicas de saúde. Esperemos que o Judiciário tenha a sabedoria de deixar essa questão com o Congresso.

Conteúdo editado por:Marcio Antonio Campos
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