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Filha da Anistia e teatro ilustrativo:  é como comprar uma ferrari para dar a volta na quadra
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Filha da Anistia é espetáculo sobre a ditadura militar e os sofrimentos que esta causou no nível íntimo das famílias e dos torturados.

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Legenda do encarte: “Em busca de sua história, Clara acaba encontrando um passado de mentiras e omissões forjado durante os “Anos de Chumbo”.

Tem tom realista e, conforme o encarte (e só conforme ele, no último texto escrito por Alipio Freire) aspirações de tragédia contemporânea.

No texto do encarte, a referência à tragédia afirma que a característica essencial desta seria a perda pelo homem do domínio sobre seu próprio destino. Não.

A característica essencial da tragédia não é a perda do domínio humano sobre seu destino, o conflito na relação com os deuses ou qualquer outra coisa.

A característica essencial da tragédia é ter sido grega.

Antes de qualquer coisa, há muitas embocaduras quando o assunto é tragédia:

para aristóteles não era o real, mas o possível, o verossímil, era ação e não o homem;

para todo o séc. XVIII e XIX, a tragédia é nada mais que o teatro exemplar do aristotelismo;

para Nietszche era o encontro entre Apolíneo e Dionisíaco e para nós pode até ter tom pejorativo.

Qualquer coisa feita depois daquilo tem de levar em consideração este fato: o de estar, históricamente, depois daquilo.

Assim como qualquer coisa feita com cunho político, uma peça sobre a ditadura militar no Brasil por exemplo, tem de levar em consideração, porque não, Brecht.

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Os dois atores Carolina Rodrigues e Alexandre Piccini em cena.

E levar em consideração, não significa citar o nome do autor no encarte, não tente me enganar.

Não, Seu Encarte, o fato de os atores interpretarem dois personagens não constitui por si a gestus de Brecht.

Sim, Seu Encarte, a cena em que a atriz canta “Jardins de Infância” poderia facilmente descambar para a pieguice e é por isso que descamba, mesmo que a atriz tenha feito EAD.

E não, distanciamento não estimula a platéia a chorar.

A atuação digna da Rede Globo (segundo uma amiga, um stanislávski mal-feito) fez muita gente chorar. Saí de lá seca.

E isto me torna ou maluca ou muito maluca por não coadunar.

A curva dramática que estruturava a história da menina que, anos depois, encontra o pai desaparecido nos anos de ferro em flashback (flashback?) causaram no público uma identificação que me assusta.

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E é talvez desta narrativa, desta história base que venha a forçada relação com a tragédia grega.

Mas, qual delas? O Mythos, a estrutura fabular diagnosticada por Aristóteles está sim presente na peça.

Mas em que medida a fábula de uma menina cujo pai foi morto na ditadura ainda nos importa como opção estética?

A fábula sem mais ferramentas vira, novamente, novela.

Não me levem a mal, não sou má pessoa, confio na causa defendida mas tanta boa intenção tem feito meu mundo tão pior…

Não quero ofender, mas a noção de espaço público, espaço em que o teatro é soberano era da grécia antiga, não nossa.

Um teatro civilizante, moralizante não tem mais eficácia ou alcance que as novelas ou que hollywood, nada pessoal mas não adianta tentar disputar.

Sem querer parecer cética, mas a relação com o divino ou com a divindade simplesmente não existe na peça.

E acho isto bom por que então sequer vou precisar falar muito sobre o fato de que acreditar num destino selado independente de nossa vontade só pode fazer mal quando o assunto é ideologia.

A voz da avó em off avisando a neta que sabe o paradeiro do pai, e nos dando (a nós, sublime público) de mão beijada todas as chaves para o conflito que se revelará: “minha filha, compreenda que Pedro não era má pessoa, ele não te abandonou. Agora que estou morrendo, procure seu pai e resolva seu problema com ele”.

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Ora,tenha dó, Pedro, foi largar a menina e agora a gente vai ter de assistir a quase duas horas de novela!

Não me levem a mal, não sou má pessoa. O auditório do José Maria Santos estava quase cheio e três professores muito sabidos fizeram parte do debate interessantíssimo sobre a anistia e sobre a abertura dos arquivos da ditadura e etc.

Mais triste que as vítimas da ditadura (todos nós) foi ter achado o debate mais interessante do que a peça, o debate!

E o conteúdo do debate não foi, de fato, interessantíssimo é mentira minha.

Não me levem a mal, não pretendo ofender, mas o jargão jurídico das duas componentes da mesa de discussão tem potência de ressecar qualquer humanidade.

Era mais interessante, posto que bonito, aquela gente toda tão interessada em discutir este tão importante assunto.

E tanta gente chorando por identificação com um assunto tão importante. Mas tanto interesse merecia um teatro mais afiado. Ah! Merecia.

Dois pontos altos: as imagens de protestos e dos 308 mil investigados.

Muito bem escolhidas, eram projetadas em caixas vazias de papelão. As imagens, não o teatro.

Mas nada mais me inspirava confiança depois de ter sido tãão subestimada: “Iara, você está grávida, não pode viver na clandestinidade – Pedro, só não conto pra mamãe que você não tava na aula, se você me levar no próximo encontro do grupo de teatro”.

Tá bom! Já entendi que eles são irmãos que se provocam mas se amam!

Já entendi que a ditadura não poupou nem as grávidas! Já en-ten-di!

E a cena em que Pedro se encontra com ele mesmo no seu passado? Ai, ai ai, é feio fazê cena assim! Tua mãe não te ensinou, não?

Usar o teatro assim como mera ilustração de uma fotografia política (e por sinal, nada na peça trazia novas informações ou pontos de vista interessantes sobre o acontecido na ditadura brasileira) no gênero conceitue e exemplifique do colégio é, acredito, uma das muitas razões para o teatro estar perdendo público.

Usar o teatro assim como mera ilustração é, para mim, tipo comprar uma ferrari pra dar a volta na quadra.

Se quiser saber mais sobre a peça, ou ao menos sobre o tema da peça, acesse o blog da Cia Caros Amigos

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