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A noção de acaso aumenta a crença em Deus?
| Foto:
Jerry Friedman/Wikimedia Commons
Provavelmente a flor mutante é a alaranjada; antes da engenharia genética, esse tipo de coisa só podia acontecer por mero acaso.

Um estudo publicado em janeiro de 2010 na revista Psychological Science caiu na minha mão há algumas semanas e lida com questões interessantes a respeito do acaso. Como sabemos, o acaso e a aleatoriedade têm um papel importante em processos evolutivos, por exemplo nas mutações genéticas que vão levar ao surgimento de novas variedades animais e vegetais. E existem interpretações muito diferentes sobre o que isso significa: para o ateísmo militante, esta é uma “evidência” da inexistência de Deus. Mas não faz muito tempo vimos aqui o John Polkinghorne afirmar que o acaso é uma coisa boa, é um “espaço de manobra” concedido por Deus à criação para que possa se desenvolver sem precisar que Ele fique o tempo todo intervindo. Por outro lado, felizmente nem tudo no mundo é governado pelo acaso: o universo tem suas leis físicas, químicas e biológicas, e é justamente sua existência que permite o trabalho da ciência. Se tudo fosse aleatório, o que os cientistas seriam capazes de concluir sobre a natureza?

A pesquisa, feita por três psicólogos da universidade canadense de Waterloo, é curtinha: o PDF tem 4 páginas, mas apenas 2 trazem conteúdo de verdade. Participantes foram convocados para um estudo, pensando que se tratava de uma pesquisa sobre percepção de cores (o verdadeiro objetivo do estudo não podia ser revelado para evitar influência na hora de colher as respostas que realmente interessavam). Todos eles tomaram uma pílula que não tinha efeito nenhum; metade do grupo foi informada disso, e a outra metade pensava que o “remédio” causava uma ligeira ansiedade. Cada um desses grupos foi novamente dividido em dois. Os participantes passaram por um exercício de “montar frases”: enquanto uns lidavam com palavras “negativas”, outros tinham de fazer frases com palavras associadas à noção de acaso ou de aleatoriedade. Por fim, todos eles tiveram de responder se acreditavam que o mundo era governado por algum tipo de ordem sobrenatural, como Deus ou carma.

Como resultado, um dos quatro grupos (aquele exposto a palavras ligadas a “acaso” e que sabia estar tomando apenas placebo) apresentou uma tendência maior a acreditar em uma ordem sobrenatural no universo. Os outros três grupos tiveram números semelhantes, com tendências menores à crença – inclusive o grupo exposto a palavras de “acaso”, mas que foi informado sobre supostos efeitos colaterais da pílula.

O que isso quer dizer? Segundo os autores, quanto mais se fala no papel do acaso nos processos naturais (ou “caos”, como diz Aaron Kay, um dos pesquisadores), mais as pessoas se apegarão à noção de algum ser ou entidade que bote ordem no mundo. Seria uma espécie de refúgio contra uma suposta noção de que as coisas estão fora de controle. A conclusão tem um quê de ironia – assim como o fato, reportado na Inglaterra, de a pregação de Dawkins e companhia associando evolução a ateísmo levar ao aumento no número de criacionistas.

Mas, antes que alguém se apresse e diga “viram? Fé não passa de subterfúgio para quem não quer encarar a realidade”, Kay afirma que suas conclusões não se aplicariam somente a pessoas religiosas. “Deus não é o único sistema de crença em que as pessoas podem se apoiar com esse propósito. Uma defesa mais intensa de sistemas políticos, filiação a grupos sociais, e até a percepção ilusória de padrões podem ocorrer após a tomada de consciência sobre o papel do acaso. Embora eu acredite que a crença em Deus tenha muitas vantagens sobre outros meios, mais seculares, de ‘controle compensatório’, certamente existe a possibilidade, para aqueles que não inclinados a crer em Deus, como os ateus, que a perceção da aleatoriedade possa direcioná-los a essas alternativas seculares”, diz o psicólogo. Lendo isso, eu me pergunto se não estaria aí parte do encanto que, por exemplo, o marxismo exerce sobre as pessoas, ao propor que os processos históricos levarão inevitavelmente a uma direção (no caso, a utopia socialista). Não deixa de ser uma tentativa de encontrar ordem no mundo, mas prescindindo de Deus.

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Atualização em 12/3: depois que publiquei o texto, me ocorreu um questionamento: seria possível que, por causa de uma dessas coincidências incríveis da vida, o grupo que sabia estar tomando placebo e foi exposto a palavras de aleatoriedade já fosse naturalmente mais inclinado à religiosidade que os outros três grupos, influenciando o resultado final da sondagem? Entrei em contato com o professor Key, que me enviou a seguinte resposta:

A resposta curta é que partimos do pressuposto de que a seleção aleatória dos pesquisados garantirá um nível equivalente de “religiosidade crônica” entre os quatro grupos. De fato, existe um número infinito de variáveis que poderíamos controlar para ter certeza de que não havia esse tipo de influência, mas a seleção aleatória é normalmente vista como um “grande equalizador”, balanceando essas diferenças individuais em relação a certos aspectos. Dito isso, também é possível fazer uma pré-medição de algumas variáveis para que a seleção aleatória seja ainda mais eficiente. Mas, em uma experiência como essa, medir a religiosidade das pessoas antes da pesquisa seria problemático, pois os participantes estariam tentados a responder as perguntas de acordo com as respostas que elas haviam dado na pré-seleção. As pessoas não gostam de perceber que suas atitudes são maleáveis, então perguntar a mesma questão duas vezes, ou apresentar perguntas similares antes e durante o estudo não seria conveniente. Além disso, em outros de nossos estudos, nós controlamos estatisticamente a religiosidade da amostra pesquisada e ela não interferiu com os resultados.

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