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As duas principais vacinas em aplicação no Brasil, a Coronavac/Butantan e a de Oxford/Fiocruz, usaram linhagens celulares derivadas de fetos abortados na produção ou nos testes.
As duas principais vacinas em aplicação no Brasil, a Coronavac/Butantan e a de Oxford/Fiocruz, usaram linhagens celulares derivadas de fetos abortados na produção ou nos testes.| Foto: Jonathan Campos/Agência Estadual de Notícias

Não está muito fácil a vida dos pró-vida preocupados com a Covid, mas preocupados também com o fato de todas as vacinas aprovadas até agora terem feito uso – seja na produção, seja na fase de testes – das linhagens celulares oriundas de fetos abortados décadas atrás. E fica mais difícil ainda quando se dá ouvidos a algum dos dois extremos da discussão, tanto aquele que quer impedir as pessoas de se vacinar, dizendo que estão cometendo um grave erro moral, quanto aquele que deseja impor a vacinação passando por cima da consciência de cada um.

Por isso, e apesar da linguagem que alguns podem considerar incendiária demais ou até antivacina, achei bastante interessante esse manifesto lançado há pouco mais de um mês, e assinado pelo bispo Joseph Strickland e por dois casais – Catherine (a autora do texto) e Michael Pakaluk, e Stacy e Jose Trasancos, todos envolvidos com questões bioéticas. Mas ele exige uma leitura bastante atenta para não se tirar conclusões precipitadas.

Está bastante óbvio que o manifesto é uma exortação aos católicos para que evitem as vacinas feitas ou testadas em linhagens como a HEK-293. Mas nem de longe os autores e signatários pretendem defender que tomar tais vacinas seja moralmente errado, ou pecaminoso – a própria Igreja já disse que esse é um recurso moralmente lícito na ausência de outras alternativas e em casos de extrema gravidade.

Se a maioria das pessoas se der por satisfeita ao receber a vacina, sabendo que isso será moralmente lícito caso não haja alternativa (porque é lícito mesmo), e não fizer mais nada a respeito, a indústria farmacêutica não vai mudar

O problema é que, em muitos casos, tratar esse caso como “moralmente lícito” virou senha para acomodação. Stacy Trasancos mostra isso em um artigo sobre como surgiu o manifesto. Quando a Pontifícia Academia para a Vida publicou seu parecer de 2005, em que lançou as bases para se analisar os casos das vacinas ligadas a essas linhagens celulares, deixou claro que essa era uma situação tolerável, não desejável, e que precisava ser combatida por meio da pressão sobre a indústria farmacêutica para que houvesse oferta de vacinas e medicamentos eticamente produzidos. Mas isso não ocorreu; a maioria dos católicos, das autoridades eclesiásticas e dos bioeticistas se contentou com a primeira parte da conclusão, sobre a licitude moral do uso das vacinas, e esqueceu da segunda parte, a que pedia ação firme para superar essa situação.

E a pandemia de Covid, que deveria ser uma chance única de dar visibilidade a esse pleito, está sendo usada de outra forma: o que seria algo meramente tolerável está aos poucos sendo descrito como uma “obrigação” ou “responasbilidade moral” – é o palavreado usado, por exemplo, em um documento da conferência episcopal norte-americana. E quem, guiado pela sua consciência, não quer se beneficiar da pesquisa biomédica que usa material biológico obtido por meio de um aborto faz o quê? São essas pessoas que estão sendo abandonadas por esse consenso sobre a tal da “responsabilidade moral”. Stacy conta em seu artigo o caso de uma enfermeira que recusou um bônus de US$ 800 para se vacinar e, quando alegou objeção de consciência, ouviu do chefe que não bastava a autodeclaração; ela precisaria de uma carta assinada por um clérigo. O padre da paróquia dessa enfermeira se recusou a escrever a carta alegando que ela tinha uma “obrigação moral” de tomar a vacina.

Mas qual é, realmente, a nossa “obrigação moral”? É cuidar de nós mesmos e dos que nos são próximos. Como fazer isso é outro papo. Haverá quem julgue que a pandemia é motivo suficientemente grave para, na ausência de uma vacina que não use as linhagens celulares oriundas de fetos abortados (isso é fundamental), tomar a vacina que estiver disponível. É o meu caso. Haverá aqueles cuja consciência os proíba de usar essas vacinas, pois não querem nenhum tipo de cooperação com o mal. Essas pessoas não estão violando suas obrigações morais ao recusar a vacina; estão apenas agindo de acordo com sua consciência – e a consciência obriga, como lembra São John Newman. Mas todos estarão, sim, violando essa obrigação caso desprezem todas as outras medidas de higiene e distanciamento que ajudam a evitar a propagação do vírus – e isso está até no documento da Congregação para a Doutrina da Fé publicado no fim do ano passado.

Um dos pontos levantados pelo manifesto é importante: se a maioria das pessoas se der por satisfeita ao receber a vacina, sabendo que isso será moralmente lícito caso não haja alternativa (porque é lícito mesmo), e não fizer mais nada a respeito, a indústria farmacêutica não vai mudar – e a demanda por material biológico proveniente de abortos continua firme e forte, como demonstrou o caso recente da Planned Parenthood, exposto por David Daleiden em 2015. Por que, como lembra o texto, os pesquisadores fazem tanta noção de deixar claro que nenhum animal foi maltratado na produção das vacinas enquanto tratam o uso de material biológico derivado de um aborto como se fosse a coisa mais normal do mundo? Por que um salgadinho feito com milho transgênico traz um triângulo amarelo enorme com um “T” na embalagem, mas as caixinhas ou frascos das vacinas não têm um ícone indicando o uso das linhagens celulares ilícitas? Porque não fazemos barulho suficiente – nem nós, os leigos, nem nossos líderes, o clero.

E mais: se os padres e bispos não defenderem a objeção de consciência dos seus fiéis, como esperar que o Estado a defenda? Não me surpreenderia se um tribunal qualquer negasse esse direito a alguém, transformando sua vida em um inferno, forçando-o a escolher entre fazer algo que sua consciência não lhe permite fazer, ou tendo de encarar quase que um banimento da vida social. Afinal, é isso que as tais “restrições civis” significam.

A mensagem do manifesto não é simplesmente “não queremos vacinas”. Está mais para “queremos e precisamos de vacinas, mas não estas vacinas”. Ninguém ali é idiota a ponto de negar que um vírus ou bactéria só deixa de circular em uma sociedade quando se atinge um determinado grau de imunização de seus membros. Ter vacinas é necessário, mas igualmente necessário é ter vacinas boas do ponto de vista ético, e é esta a briga que os autores do manifesto se dispuseram a comprar, conscientes das consequências de não se vacinar contra a Covid-19 enquanto não aparecer uma alternativa eticamente correta (vem logo, Covaxin!), mas também conscientes de que esse é um preço que vale a pena pagar para conseguir mudar a indústria farmacêutica. Como eu já disse em uma ocasião anterior, por mais que eu pretenda me vacinar, não contem comigo para atacar quem pensa como o bispo Strickland, os Pakaluk e os Trasancos.

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