Entrevista coletiva em que os resultados do carbono-14 do Sudário de Turim foram anunciados: na época, verdade absoluta; hoje, números muito controversos.| Foto: Reprodução

Anda fazendo um bom barulho nos círculos católicos um estudo publicado em março pela revista Archaeometry sobre o Sudário de Turim – parte do barulho vem do próprio conteúdo do estudo, mas outra parte vem de conclusões precipitadas, quando não erradas mesmo, sobre o que ele representa. O paper de Tristan Casabianca, Emanuella Marinelli, Giuseppe Pernagallo e Benedetto Torrisi não é nenhum estudo feito sobre o Sudário propriamente dito, mas uma análise dos dados brutos do famoso (e controverso) teste de carbono-14 feito em 1988, e segundo o qual o Sudário era uma farsa medieval.

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A literatura sobre o exame é tão extensa quanto as dúvidas que existem sobre o grau de confiabilidade. Para começar, o protocolo mais rigoroso, desenhado pelo brasileiro Carlos Chagas Filho (então presidente da Pontifícia Academia de Ciências) e que envolvia sete laboratórios, representantes de duas técnicas diferentes de datação, foi totalmente ignorado por pressão do assessor científico do arcebispo de Turim, que defendeu o exame feito por três laboratórios, todos usando a mesma técnica – as universidades de Oxford (Reino Unido) e do Arizona (EUA), e o Instituto Federal de Tecnologia, em Zurique (Suíça) –, sob a supervisão do Museu Britânico. E, claro, há todos os questionamentos envolvendo a própria natureza do pano, cuja excessiva manipulação teria levado a uma contaminação que afetou os resultados do carbono-14 publicados em 1989 pela revista Nature.

Tudo isso já é sabido. Qual é, então, a novidade do quarteto? Eles conseguiram o que muitos pesquisadores vinham buscando desde a divulgação do resultado: os dados brutos dos laboratórios. Usando o equivalente britânico da nossa Lei de Acesso à Informação, os autores do estudo obtiveram toda a papelada com o Museu Britânico e se debruçaram sobre ela, encontrando uma série de inconsistências entre as várias medições realizadas pelos três laboratórios e os dados publicados na Nature em 1989. É um trabalho quase que puramente de ordem estatística: pegar todos os números e analisá-los para determinar o verdadeiro grau de confiabilidade do teste de carbono-14 feito no Sudário – que, segundo o artigo da Nature, seria de 95%. Algumas dessas ferramentas utilizadas pelos autores deste novo estudo não existiam na época do exame no Sudário.

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O recente estudo não é um prego no caixão da pesquisa de 1988, mas certamente abala ainda mais suas bases

Uma delas, o software OxCal, entregou números realmente intrigantes referentes ao grau de concordância entre os resultados das medições nas amostras do Sudário. De acordo com os autores, para se ter um resultado homogêneo e confiável, esse grau deveria de ser de pelo menos 60%. No entanto, o índice geral de concordância ficou em 41,8%. Em alguns casos de comparação entre os dados brutos dos laboratórios e o que foi publicado na Nature, esse grau ficava abaixo de 30%! Ou seja, há discrepâncias entre os dados de um laboratório em relação a outro, há diferenças significativas até mesmo nos testes feitos por um mesmo laboratório, e, por fim, há diferenças entre o conjunto de dados brutos e os números publicados.

O que isso quer dizer, no fim das contas? Os autores explicam: "As medições feitas pelos três laboratórios nas amostras do Sudário de Turim sofrem de uma falta de precisão que afeta seriamente o grau de confiabilidade de 95% atribuído à medição do intervalo de 1260 a 1390 d.C.", em referência à data em que o Sudário teria sido confeccionado, segundo os responsáveis pelo carbono-14.

E o que isso não quer dizer? Em primeiro lugar, não quer dizer que os autores do estudo estejam defendendo que o Sudário seja da época de Cristo. Eles lembram que, mesmo havendo discrepâncias, todos os exames feitos por todos os laboratórios deram resultados apontando a amostra como sendo da época medieval. No entanto, os pesquisadores também recordam a turbulenta história do Sudário, apontando que ela pode ser fonte de contaminação das amostras colhidas em 1988. Ou seja, para os autores do artigo da Archaeometry, a verdadeira idade do Sudário continua a ser uma incógnita. Pode ser medieval, pode não ser.

Outra interpretação totalmente equivocada, mas que já vi em sites católicos, é a de que a Universidade de Oxford estaria "se retratando" pelo erro no exame, já que a revista Archaeometry é publicada por essa instituição. Este é o bom e velho non sequitur, conclusões que não derivam das premissas. Nenhum dos quatro pesquisadores que assinaram o artigo é de Oxford. Até agora, pelo que se sabe, os integrantes da equipe britânica que participou do teste de carbono-14 não responderam ao estudo. O fato de uma revista acadêmica publicada por Oxford ter recebido, avaliado, aprovado e publicado o artigo não é um recuo – nem oficial, nem extraoficial – em relação ao trabalho feito em 1988; é apenas a forma como se constrói o conhecimento científico.

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Quando os responsáveis pelo teste vieram a público, 30 anos atrás, seu veredito foi visto quase como verdade absoluta. Ao longo dessas três décadas, foram surgindo diversos questionamentos, mas o exame continuou colocado em um pedestal; não faz muitos anos, eu mesmo apontei algumas características ainda inexplicadas sobre o pano, em mídias sociais ou na seção de comentários de um site, e recebi de um jornalista de ciência uma resposta do tipo "o carbono-14 já afirmou que o Sudário é medieval", no melhor estilo "aceita que dói menos". Pois bem: o recente estudo se junta a uma série de outras pesquisas que negam esse caráter de palavra definitiva ao carbono-14. Não é um prego no caixão da pesquisa de 1988, mas certamente abala ainda mais suas bases.

O que fazer, então? A recomendação que os quatro autores do estudo fazem não surpreende ninguém: novos testes no Sudário. Os equipamentos evoluíram, e a amostra deveria ser de uma área mais central do pano, para evitar os problemas derivados da excessiva manipulação nas bordas do tecido. Minha opinião de leigo que leu bastante (ainda que longe de ter lido tudo) sobre o Sudário é de que talvez não valha a pena. O tecido já foi remendado, publicamente exposto inúmeras vezes, teve seu relicário incendiado, enfim, passou por tanta coisa que todo ele deve estar irremediavelmente contaminado, inviabilizando qualquer afirmação precisa sobre a idade do pano com base na datação por carbono-14. Melhor ficarmos com outras análises (por exemplo, sobre as manchas de sangue, ou sobre características do tecido), mesmo que insuficientes para nos dar uma data exata, irrefutável, para o Sudário, e que o resto fique a cargo da (falta de) fé de cada um.