Peça de bronze em Florença mostra Giordano Bruno diante da Inquisição. Fato é que Gregório Duvivier ainda precisa comer muito feijão para chegar perto de Bruno e de Galileu Galilei.| Foto:
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Triste ter de voltar do recesso de fim de ano, combinado com uma viagem na semana passada, e perceber que certos mitos persistem e são amplificados por, hm, “formadores de opinião”.

Nunca vi um vídeo do tal Porta dos Fundos. Nem os polêmicos, nem os apenas engraçados. Portanto, o que sei do “especial de Natal” deles é o que ouvi dizer. Parece que o grupo passou do limite entre o humor sadio e o desrespeito puro e simples (lembrem-se: quem escreve essas linhas é um fã de A vida de Brian e das tirinhas de Deus do Laerte, algumas das quais até publico no blog, com autorização do cartunista). Não vamos discutir aqui se isso devia ser proibido, tolerado ou promovido, não é o objetivo do blog. Mas o Porta dos Fundos veio parar no Tubo porque um de seus membros, Gregório Duvivier, usou sua coluna semanal na Folha de S.Paulo para responder a um tuíte do cardeal-arcebispo de São Paulo, dom Odilo Scherer, que criticou o vídeo. E, como não podia deixar de ser, Duvivier promoveu a desinformação sobre a história da relação entre a Igreja Católica e a ciência.

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Primeiro, Duvivier cita Galileu, tentando fazer do astrônomo um humorista perseguido pela Igreja por sua veia cômica. “Como V. Emª deve saber, não foi a teoria heliocêntrica que causou a condenação de Galileu Galilei. Copérnico já havia dito que a Terra girava em torno do Sol e a Igreja não se importou. O que provocou a ira papal foi o humor”, diz o comediante. Como se o Diálogo fosse uma simples obra de humor (o que não era), e não a apologia do heliocentrismo. Duvivier devia saber que o que provocou a condenação papal não foi o humor, mas a desobediência a uma ordem prévia da Inquisição, segundo a qual Galileu não deveria defender o heliocentrismo. Isso independia completamente do tom mais cômico ou sério da obra. Não posso deixar de remeter aqui à resenha que fiz de Galileu — pelo copernicanismo e pela Igreja, de Annibale Fantoli.

Além disso, tenho minhas razões para imaginar que Galileu teria odiado ser colocado no mesmo saco de Gregório Duvivier. O florentino amava profundamente a Igreja, e continuou amando-a depois de sua condenação. Bem o oposto do comediante do Porta dos Fundos. Se soubesse algo de história, Duvivier teria se comparado não a Galileu, mas a Lucas Cranach, o Velho, que fazia gravuras satirizando o papa na época da Reforma.

Duvivier ainda acrescentou na sua lista Giordano Bruno, que nunca foi humorista, nem se dispôs a fazer algo parecido com humor. Mas, para o comediante do Porta dos Fundos, pareceu conveniente citar Bruno para reforçar sua tese de vitimização. “Giordano Bruno, contemporâneo de Galileu, acreditava que o universo era infinito. Negou-se a se negar. Foi queimado vivo”, diz Duvivier. Pois é, errado de novo. Ele deveria ler o capítulo 7 de Galileo goes to Jail and other myths about science and religion. No texto, Jole Shackelford, da Universidade de Minnesota, mostra que a condenação de Bruno ocorreu não pelo que ele acreditava a respeito da extensão do universo ou do movimento dos corpos celestes, mas por suas opiniões sobre a virgindade de Maria e a natureza de Cristo, entre outros temas de natureza puramente teológica. Shackelford afirma que a crença de Bruno numa multiplicidade de mundos habitados causou, sim, preocupação entre os inquisidores, mas naquele tempo essa não era uma questão científica, mas teológica, pois tinha implicações sobre a doutrina da redenção.

Então, antes de pretender dar lição de moral a dom Odilo, bom mesmo seria que Duvivier estudasse um pouquinho de História.

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