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Abaixo vai a íntegra da entrevista com o dr. Cícero Urban, publicada neste sábado, no caderno Vida e Cidadania da Gazeta do Povo:

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Na época em que imperadores romanos perseguiam cristãos, os mártires, que aceitavam o sofrimento em nome da fé, eram admirados, mas os bispos avisavam: ninguém devia se entregar voluntariamente às autoridades romanas buscando o martírio. Da mesma forma, o oncologista Cícero Urban acredita que a dor e o sofrimento, quando são ativamente buscados pela pessoa, não têm valor sobrenatural. Por outro lado, quando alguém é atingido por uma situação como uma doença ou uma tragédia, pode aproveitar a oportunidade para rever seus valores e buscar superação. Aí, sim, a dor e o sofrimento têm valor – e Urban fala com a experiência de quem também já foi paciente de câncer. Professor dos cursos de graduação e pós em Medicina da Universidade Positivo, com pós em Bioética pela Universidade do Sagrado Coração, em Roma, e vice-presidente do Instituto Ciência e Fé, Urban falou à Gazeta do Povo sobre alguns dos temas de uma palestra que ele dará no próximo sábado, em Curitiba.

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Por que falar sobre a dor e o sofrimento?
Acho que em primeiro lugar só precisamos fazer algumas definições. Quando falo em “dor”, me refiro à dor física, e hoje não há dor que não possa ser tratada. Já o sofrimento é diferente, é mais profundo. O que me motivou a falar desse assunto foi um artigo recente de um oncologista italiano, Umberto Veronese, para quem a dor e o sofrimento, na verdade, afastam de Deus. Mas ele é ateu, e não creio que a questão deva ser vista dessa forma extrema. A dor e o sofrimento não afastam de Deus, mas também acho que, quando são algo procurado, não aproximam de Deus, não são instrumentos de redenção. Eles não são necessários, embora seja inevitável que nos atinjam em algum ponto de nossas vidas; mas não creio que tenham de ser buscados. Eu lido com situações como essas todos os dias, e acredito que hoje lutamos para que os pacientes possam ter uma chance de cura. No caso do câncer de mama, minha especialidade, não vejo sentido em buscar a cura de uma paciente com uma mutilação e não procurar também a possibilidade de uma reconstrução, para ela continuar a viver com qualidade. Posso dizer isso como médico e também como paciente.

Como foi sua experiência de paciente?
Há três anos fiz uma duodenopancreatectomia – uma retirada quase total do pâncreas por causa de um tumor que havia na cabeça do órgão. Eu sempre falei sobre a terminalidade, dei aulas sobre o manejo do paciente terminal, e escolhi a oncologia no começo da carreira justamente porque era meu desejo lidar com cuidados paliativos na fase avançada da doença. Medo de morrer todos temos, mas, por causa da minha experiência profissional, não posso dizer que estava sendo pego de surpresa. Eu não acho que estivesse aterrorizado com a possibilidade de morrer; o que me preocupou na descoberta foi a questão do sofrimento. O tempo de vida que poderia me restar não era a questão mais importante, e a própria cirurgia pela qual passei tinha uma mortalidade de 10% a 20%, mas não era essa a questão – a questão é não querer sofrer. Ainda assim, em momento algum eu observei que a doença fosse um instrumento para minha salvação, que eu estivesse sendo purgado dos meus pecados e pudesse ir ao céu por estar passando por aquilo. Se eu tivesse de morrer e ir para o céu naquele momento, seria pela pessoa que fui e pelo bem que fiz ao longo da vida, e não pelo tempo de agonia causada pelo câncer.

Como a doença influenciou seu modo de ver a vida?
Em primeiro lugar, acho que fiquei mais sereno, no sentido de lutar pelo que realmente pode ser mudado; de não me preocupar tanto com o que vem pela frente e com o que ficou para trás, mas lidar com o tempo presente, que é o que temos de concreto. Não falo de aproveitar a vida no sentido hedonista, de buscar o prazer desenfreado, mas no sentido de observar que somos vulneráveis e frágeis, e que não vale a pena se preocupar demais com interesses secundários. Depois, veio a questão da excelência: a vida é muito curta para sermos medíocres e pequenos, temos de buscar a excelência em tudo que fazemos. E, por último, aprendi mais sobre o amor ao próximo, que é o sentido maior, é a base da nossa profissão de médico. Foi uma grande lição perceber como é importante poder trazer alívio ao sofrimento do próximo.

O câncer alterou sua espiritualidade?
A espiritualidade é uma vivência individual. Em momento nenhum perdi a fé, achei que Deus estava querendo me causar problemas, ou que Ele não existisse. Seria muita pretensão da minha parte pensar algo assim. O que fiz foi me questionar sobre o que tinha feito como pessoa, e percebi que, quando alguém se depara com a possibilidade real e objetiva de morte, começa a buscar algum sentido para a existência. Aí, sim, a dor e o sofrimento servem como instrumento para que busquemos esse sentido, mas eles, por si só, não são a redenção. Eu me perguntei o que fiz da própria vida, se deixaria mais coisas positivas ou negativas, como minha filha veria seu pai no futuro, se eu deixei o meio onde vivi melhor do que estava quando eu cheguei. Nossa sociedade busca muito o ter: carro, casa, bens que parecem absolutamente necessários para nossa felicidade, mas quando percebemos nossa fragilidade vemos que a felicidade não vem por esse caminho. Não digo que os bens não possam auxiliar, mas a felicidade não está neles. Rubem Alves diz que a saúde faz os sentidos dormirem e a dor os desperta, e acho que ele tem razão. Todo dia, quando acordo, a primeira coisa que penso é “que bom que não estou com dor, posso comer, posso trabalhar”, porque durante parte da minha vida eu fui privado disso. Quem nunca passou por isso não valoriza esses aspectos. Isso é muito mais importante que tantas outras coisas disponíveis no shopping center.

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É frequente que os pacientes se perguntem o porquê da situação pela qual passam?
Todo paciente faz esse questionamento, e comigo não foi diferente. Eu estava em uma das fases mais felizes da minha vida, com 35 anos, carreira em ascensão, uma filha com 5 meses, tudo estava bem. E, de repente, um diagnóstico muda completamente minha perspectiva de vida. É frequente que as pessoas se revoltem em situações assim. Mas a maior parte dos pacientes, com tratamento e apoio adequados, acaba superando. E aí voltamos àquela distinção entre dor e sofrimento. Como médico, posso aliviar a dor e, quando possível, dar elementos para o paciente superar a doença. Mas não somos capazes de dar um sentido ao sofrimento dos outros. Essa é uma angústia que o médico carrega, e por isso há profissionais que evitam lidar com isso. É muito mais fácil tomar uma decisão sobre um procedimento cirúrgico complexo, como um transplante, do que ficar ao lado de um paciente terminal que não é mais possível curar.

O que falta aos profissionais de saúde?
Há uma falha na formação humanística oferecida pelas faculdades, mas estamos ao pouco consolidando um movimento de médicos-pacientes, especialmente graças ao trabalho do oncologista italiano Gianni Bonadona, que também passou pela experiência de ser paciente e escreveu muito sobre a necessidade de humanizar nossas práticas e hospitais. O hospital é despersonalizante: você vai para lá e não tem controle sobre quase nada, nem mesmo sobre a roupa que você usa. A estrutura é necessária, mas ao mesmo tempo tem de ser acolhedora. Hospital vem de “hospedar”, receber, então precisamos fazer as pessoas se sentirem acolhidas.

Você é uma pessoa de fé, mas também um pesquisador, que conhece os mecanismos biológicos que provocam um câncer. Algumas pessoas veem nos desastres pessoais, como doenças, e em desastres naturais, como terremotos, “mensagens” divinas. E você?
Não sou teólogo, mas para mim achar que Deus pune assim as pessoas é fazer uma interpretação errada das Escrituras. O sofrimento e a dor fazem parte da vida humana. Não acho que sejam uma punição aos pecados, até porque seriam um instrumento tosco. Além disso, se eu visse a dor e o sofrimento como instrumento de redenção, a minha profissão perderia o sentido, pois nós curamos a doença, afastamos o sofrimento e a dor. Se houvesse mérito em buscar o sofrimento e a dor, não teríamos tantos santos médicos.

O debate sobre a eutanásia voltou com força quando um jornalista britânico confessou ter provocado a morte de seu parceiro soropositivo. Qual a sua opinião sobre a eutanásia?
Na nossa vivência, o pedido pra morrer é um pedido de socorro de alguém que não recebeu todo o apoio necessário, especialmente do ponto de vista psicológico. A eutanásia não é a solução; ela é um grande risco de eliminar algo tão importante e fundamental na medicina, como os cuidados paliativos. A maior parte dos oncologistas e profissionais que lidam com pacientes terminais é contrária à eutanásia, e isso deve significar alguma coisa. Não é esse o caminho adequado, buscar a eliminação de um ser humano. Acho que a pessoa que faz um pedido desses não quer exatamente morrer; quer que lhe tirem a dor. Ainda existe muita dor tratada de forma inadequada, médicos que têm medo de receitar morfina a um paciente terminal porque “ele pode ficar viciado”, esquecendo que se trata de um paciente terminal. No Instituto Europeu de Oncologia, em Milão, há um modelo de “hospital sem dor” onde todos têm essa preocupação: uma das primeiras coisas que se pergunta ao paciente no dia é se ele sente dor. Mas aqui ainda vemos pacientes passando dor, quando poderíamos mudar isso. Paciente muito bem tratado não vai buscar a morte, mas o paciente com dor é levado, pelo desespero, a pedir coisas que não pediria se não tivesse dor.

Qual é, então, seu conceito de morte digna?
É a ortotanásia. Ela é diferente da eutanásia, é a morte no tempo certo. É um paciente que está em uma situação sem perspectiva poder ir pra casa, ficar com sua família e suas coisas, e não em uma estrutura despersonalizante. UTI é lugar para se salvar vidas, não para morrer. Felizmente os médicos e as famílias estão se tornando mais sensíveis para essa realidade. Eles estão compreendendo que, se um paciente tem uma doença crônica, sem chances de cura, prolongar artificialmente a vida só vai trazer mais sofrimento. Mas é preciso preparar as famílias desde o início, não se pode dar o aviso só quando a morte está próxima porque o trauma é muito maior. A sociedade e os próprios médicos estão percebendo que a medicina não pode tudo, e a ortotanásia é o reconhecimento desse limite. O Papa João Paulo II é um exemplo. Estava doente, e mesmo assim continuava suas viagens – ele usou a dor e o sofrimento como instrumento de superação, e nisso eu vejo valor porque isso, sim, aproxima de Deus. Mas, quando finalmente se constatou que não havia mais nada a fazer, decidiu morrer em casa. Quer maior exemplo que esse?

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Quem quiser assistir à palestra do dr. Cícero (dia 27, às 8h30, no Instituto Salette – Rua Lange de Morretes, 889, Jardim Social) pode fazer sua inscrição pelo e-mail aroldo@cienciaefe.org.br ou pelo telefone 3243-2530.

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A partir deste sábado estou em férias, então não teremos postagens até o feriado de Tiradentes. Ao contrário do ano passado, dessa vez meu acesso à internet será mais esporádico ao longo dos próximos 30 dias; continuarei liberando comentários, mas provavelmente em um ritmo mais lento. Antes de sair queria ter preparado um post sobre o Santo Sudário, mas não foi possível. Fica a promessa, até porque em abril começa uma nova exibição do Sudário em Turim, na Itália. Enquanto isso, em Curitiba haverá a exposição O homem do sudário, no Shopping Palladium, que começa no fim deste mês.