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A aprovação, na semana passada, do Estatuto do Nascituro na Comissão de Finanças da Câmara dos Deputados causou alvoroço nos últimos dias, isso apesar de a lei ainda ter um longo caminho no Congresso antes de ser aprovada. Meu colega Jônatas Lima vem acompanhando bem o assunto no seu Blog da Vida e recomendo também a leitura do artigo publicado ontem por Lenise Garcia na Gazeta do Povo, em que ela esclarece a controvérsia da suposta “bolsa estupro” que o Estatuto estaria prevendo.

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O que motiva este post foi o comentário de um amigo no Facebook. Como muitos de vocês sabem, a Gazeta do Povo é assumidamente pró-vida, já tendo deixado clara essa posição em inúmeros editoriais. Também consciente desse posicionamento, meu amigo questionou: “quando a Gazeta vai parar de fazer proselitismo em prol da restrição do aborto legal com base nos preconceitos religiosos de alguns (…)?” Perguntei a ele quando, em editorial, havíamos usado argumentos de ordem religiosa contrários ao aborto, e ele respondeu (mantenho as caixas altas) “TODAS em que se referiu ao embrião como ‘um ser humano’. Ou seja, SEMPRE”.

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É aqui que nós entramos, porque a afirmação “o embrião é um ser humano” não pertence à esfera religiosa; na verdade, é uma afirmação puramente científica. Aliás, vejo a questão do aborto não como um debate religioso, mas como um debate ético e científico. São justamente os defensores do aborto que insistem no debate religioso para poder se livrar das perguntas incômodas dizendo “se seu Deus manda que você não faça aborto, então não faça, mas não impeça quem não acredita no seu Deus de fazer”. O que dá margem a esse tipo de picaretagem intelectual, como a exibida por Clara Averbuck, é o fato de muitos dos opositores mais aguerridos ao aborto serem entidades religiosas; mas só isso não é suficiente para transformar os argumentos pró-vida em argumentos de ordem religiosa. Imagine um grupo religioso usando dados do IPCC para defender leis que limitem o dano ambiental. Alguém chamaria isso de “debate religioso”? Acho que não…

Em 1981, o filósofo Norberto Bobbio, em entrevista ao jornal Corriere della Sera, afirmou, a respeito do aborto: “Eu queria perguntar que surpresa pode existir no fato de que um leigo considere como válido em sentido absoluto, como um imperativo categórico, o ‘Não matar’; e me surpreendo que os leigos deixem aos que creem o privilégio e a honra de afirmar que não se deve matar”. Aqui, tudo indica que ele esteja usando “leigo” como sinônimo de “não crente”. Entramos, então, num debate ético, e não em um debate religioso. E, de fato, se você não for um utilitarista como Peter Singer, há de concordar, espero eu, que é moralmente errado matar um ser humano indefeso e inocente (mesmo entre os libertários, que poderiam colocar mais ênfase na autonomia da mulher, há sólida fundamentação filosófica contra o aborto). De que o nascituro é indefeso e inocente não há dúvidas. Resta a pergunta: ele é ser humano? É onde podemos contar com a ciência.

E o que a ciência nos diz, em poucas palavras, é que desde o instante da concepção se está diante de um indivíduo inegavelmente humano: tem DNA humano, diferente daquele da mãe (portanto, não pode ser visto como mera “parte do corpo da mãe”). É verdade que nos primeiros dias ainda pode ocorrer divisões que levem ao surgimento de gêmeos univitelinos, mas isso não invalida o fato de já haver um indivíduo humano desde o encontro dos gametas. O embrião já é humano (se não é humano, é o que, então? Essa é uma pergunta da qual os abortistas vivem desviando), não é um “vir a ser” ou uma “potencialidade”; ele já é. O site Portal da Família reuniu uma série de citações de livros e relatórios governamentais que apontam, todos, nessa direção. É impossível encontrar um resquício sequer de religião nessas afirmações.

Portanto, é desonesto dizer que tais argumentos científicos, só porque são invocados também por pessoas ou entidades religiosas, se tornam argumentos religiosos. Afinal, esses argumentos são tão seculares que estão entre os mais usados por grupos pró-vida ostensivamente ateus, ou que fazem questão de deixar claro que não estão vinculados a religião nenhuma, como o Secular Pro Life. Vale a pena também conferir o testemunho de um ateu pró-vida em que ele diz, com todas as letras, que deve à ciência sua convicção contrária ao aborto (com direito a uma ótima citação de Christopher Hitchens a respeito do tema).

Aliás, o único argumento puramente religioso contra o aborto seria o relativo ao momento da infusão da alma, e a Igreja Católica, para falar da confissão religiosa à qual pertenço, nem o utiliza, até porque ainda não chegou a uma definição sobre o momento dessa infusão. Em 1974, a Congregação para a Doutrina da Fé afirmava (destaque meu):

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“Desde quando o óvulo foi fecundado, encontra-se inaugurada uma vida, que não é nem a do pai, nem a da mãe, mas a de um novo ser humano, que se desenvolve por si mesmo. Ele não virá jamais a tornar-se humano, se o não for desde logo. A esta evidência de sempre (absolutamente independente das discussões acerca do momento da animação), a ciência genética moderna traz preciosas confirmações.”

A nota de rodapé referente a esse trecho afirma (também, destaque meu):

“Esta Declaração deixa expressamente de parte o problema do momento de infusão da alma espiritual. Sobre este ponto não há tradição unânime e os autores acham-se ainda divididos. Para alguns, ela dá-se a partir do primeiro momento da concepção; para outros, ela não poderia preceder ao menos a nidificação. Não compete à ciência dirimir a favor de uns ou de outros, porque a existência de uma alma imortal não entra no seu domínio. Trata-se de uma discussão filosófica, da qual a nossa posição moral permanece independente, por dois motivos: 1.° no caso de se supor uma animação tardia, estamos já perante uma vida humana, em qualquer hipótese, (biologicamente verificável); vida humana que prepara e requer esta alma, com a qual se completa a natureza recebida dos pais; 2.° por outro lado, basta que esta presença da alma seja provável (e o contrário nunca se conseguirá demonstrá-lo) para que o tirar-lhe a vida equivalha a aceitar o risco de matar um homem, não apenas em expectativa, mas já provido da sua alma.”

De 1974 até hoje não houve definição magisterial sobre o momento da infusão da alma, embora me parece que a tendência majoritária defenda a infusão imediata. Mas, mesmo assim, vemos que a Igreja afirma que o aborto deve ser condenado por motivos éticos e científicos. Por isso, se algum dia você ouvir que “a Igreja é contra o aborto, ou a pesquisa com embriões, por defender que desde a concepção o embrião já tem alma”, desconfie. É uma tentativa de levar o debate para aquela falácia do “se o seu Deus proíbe, então não faça, mas deixe os outros em paz” citada lá no começo do post.

Na mesma discussão no Facebook que motivou este post, um outro amigo lembrou que, encurralados pela impossibilidade de demonstrar que um embrião não é um ser humano, os abortistas passaram a investir na diferenciação (nada científica, aliás) entre ser e pessoa. “OK, tudo bem, o embrião é ser humano, mas não é pessoa humana, e por isso não deveria ter as mesmas garantias que as pessoas têm”, e por aí vai; é como alguns tentam defender o aborto: na base da pura arbitrariedade. E deixo para o pessoal do Secular Pro Life a refutação desse tipo de raciocínio, mostrando a que consequências levou a arrogância de negar a humanos o status de pessoa humana.

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Desde o começo do blog dizemos que, enquanto a ciência colabora com a religião purificando-a das superstições, a religião colabora com a ciência promovendo o debate ético. No caso do aborto, vimos que os argumentos são ético-científicos, e não religiosos, tanto que eles são usados também por pessoas e grupos não religiosos. Mas, ainda que um dia sobre apenas gente de fé entre os pró-vida, nem por isso suas afirmações se transformariam em argumentos religiosos. Se os abortistas querem defender o direito de matar um ser humano inocente e indefeso, paciência. Mas que o façam com um mínimo de honestidade intelectual.

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