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Richard Dawkins (à esquerda), em foto de 2014, e Francis Collins (à direita), em imagem de 2007: debate civilizado sobre a pergunta mais fundamental de todas.
Richard Dawkins (à esquerda), em foto de 2014, e Francis Collins (à direita), em imagem de 2007: debate civilizado sobre a pergunta mais fundamental de todas.| Foto: Cristóbal García/EFE / Juan M. Espinoza/EFE

Nesses tempos em que, para abafar na internet, “debatedores” à esquerda e à direita parecem cada vez mais empenhados em argumentar menos e provocar mais, de preferência até tirar o interlocutor do sério, para poderem afirmar que “ganharam o debate”, é de certa forma reconfortante saber de dois casos, um em livro e outro em vídeo, em que teístas e ateus foram capazes de conversar civilizadamente – com alguma dose de ironia e um pouco de deboche, é verdade, mas sem arroubos.

Round 1: os filósofos

A editora Ultimato, que lançou anos atrás a extraordinária série Ciência e Fé Cristã, em parceria com a Associação Brasileira de Cristãos na Ciência, traz uma nova coleção, chamada Filosofia e Fé Cristã, também em colaboração com a ABC2. O volume inaugural é Ciência e Religião – São compatíveis?, que registra um debate em parte presencial (ocorrido em 2009), em parte por escrito, entre os filósofos Alvin Plantinga e Daniel Dennett. É leitura curta, pouco mais de 100 páginas que vocês podem matar em uma tarde, mas nada superficial.

Plantinga, a quem coube iniciar a conversa, escolheu restringir um pouco o escopo do debate, que não seria tanto sobre a compatibilidade entre ciência e religião, mas entre teoria da evolução e religião. Plantinga dirá que sim, são compatíveis – seu problema não é com a evolução, nem com a ciência, mas com o naturalismo, a noção de que não há nada mais além do mundo natural –, e Dennett inicia sua réplica concordando, o que surpreende, se considerarmos que estamos falando de um dos “quatro cavaleiros” do Novo Ateísmo, mas logo vai ficar claro que os dois não estão exatamente tratando da mesma coisa. O ateu logo se empenhará em ridicularizar a crença em Deus, inventando uma comparação tosquinha com o Super-Homem, mas tenho que dizer que Plantinga acaba deixando uns flancos abertos.

Separar o que o ateísmo militante uniu – a evolução biológica e as evidências que a apoiam, e a visão de mundo segundo a qual a evolução provaria que não existe Deus, ou um propósito na natureza – é tarefa árdua e repetitiva, mas tem de ser feita

O que me incomoda especialmente na argumentação de Plantinga é sua simpatia-quase-amor pelo Design Inteligente e sua ideia de como Deus “cria por meio da evolução”. O filósofo afirma: “Claramente Deus poderia ter criado os seres vivos por meio da seleção natural, fazendo com que as mutações certas surgissem no tempo certo, protegendo as populações relevantes de desastres, e assim por diante” (p. 36) – mais à frente, ele dirá que isso é algo possível, ainda que não necessariamente verdadeiro (p. 70), mas fica implícito que Plantinga realmente acredita que as coisas tenham acontecido com esse grau de intervenção divina; mais ainda, ele vai alegar que a tese da “evolução não guiada” é “inacreditável” (p. 97) e incompatível com o teísmo.

Meu problema com o argumento de Plantinga está no fato de ele pretender colocar limites a algo muito especulativo: como Deus usou a evolução no processo criador. Ela poderia ter se desenrolado da forma como se desenrolou sem as intervenções mais diretas que Plantinga menciona? E, se foi assim, isso significaria que o processo todo não foi “desejado” ou “orientado” por Deus? Falar em evolução “guiada” pressupõe necessariamente que Deus fique intervindo em mutações ou populações para que elas prosperem? Ou também seria “guiada” uma evolução sem interferências diretas divinas, mas que cumpre o plano maior de Deus para o universo e o ser humano? Dá para perceber que até mesmo o palavreado que usamos nessa conversa precisa ser melhor definido, mas minha tendência é aceitar, sim, um processo natural que dispensa a “varinha mágica” divina (© papa Francisco) e ao mesmo tempo segue a Sua vontade.

Ainda que a noção particular de “evolução guiada” de Plantinga acabe deixando um flanco aberto que Dennett aproveita para tentar desacreditar a fé, o filósofo teísta cresce ao longo da discussão. A refutação da comparação entre o teísmo e o “super-homismo” (p. 70-72, 94-96) e a resposta ao argumento de J.B.S. Haldane sobre a necessidade de a ciência ser “ateísta” (p. 100-101) – o que vai levar a uma discussão sobre milagres que não será aprofundada por falta de oportunidade – são bem interessantes. As considerações de Plantinga sobre como os ateus acabam predispondo os crentes contra a evolução quando associam a teoria biológica a uma postura filosófica antirreligiosa (p. 98-100) não são nenhuma novidade, mas este é um aspecto que sempre merece ser lembrado. Separar o que o ateísmo militante uniu – a evolução biológica e as evidências que a apoiam, e a visão de mundo segundo a qual a evolução provaria que não existe Deus, ou um propósito na natureza – é tarefa árdua e repetitiva, mas tem de ser feita.

Round 2: os biólogos

(OK, estou forçando um pouco a barra aqui, já que Francis Collins não é exatamente um biólogo, é médico e geneticista...)

Depois de tudo o que Richard Dawkins já falou da Fundação John Templeton, fiquei surpreso ao vê-lo participar de um projeto patrocinado pela entidade. O biólogo britânico topou uma conversa com outra estrela do debate sobre ciência e fé, Francis Collins. Em uma conversa muito bem mediada por Justin Brierley, Dawkins e Collins descrevem brevemente sua trajetória intelectual; explicam como, do mesmo ponto de partida – afinal, ambos são defensores ferrenhos da teoria da evolução como a melhor explicação para a variedade da vida na Terra –, eles chegaram a conclusões opostas sobre a existência de Deus; tratam de argumentos como o ajuste fino do universo; e discutem que tipo de argumento ou evidência consideram aceitável no debate sobre Deus.

E, claro, no meio da pandemia de Covid-19, é óbvio que o vírus e o sofrimento que ele causou entrariam no debate – até porque Collins chefiou a parte científica da resposta norte-americana à doença. Mas eles logo deixam o vírus de lado e embarcam em uma discussão sobre milagres (para compensar um pouco o que faltou no livro de Plantinga e Dennett) e, especialmente, sobre as origens e a natureza do altruísmo e do senso moral que as pessoas têm; esta última parte é tremendamente fascinante e ali você pode perceber que são mesmo dois pesos-pesados debatendo.

Se você se enrola um pouco no listening, leia a transcrição da conversa no site do The Big Conversation, mas não deixe de ver o vídeo. Duas pessoas que divergem visceralmente sobre aquela que é a questão mais importante de todas sendo capazes de defender suas posições com firmeza (e duvido que alguém ali tenha mudado de ideia sobre o que quer que seja), e o fazem em uma conversa educada, rindo não do outro e sim com o outro, encontrando até mesmo alguns pontos em comum. É algo admirável e que precisamos nos esforçar para imitar.

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