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Cena do filme Spotlight
“E aí, acharam alguém para defender o diálogo amigável entre ciência e fé?” “Mas existe isso, chefe?”| Foto: Divulgação

Em um episódio de uma das primeiras temporadas dos Simpsons, Homer vai ter uma conversa “de homem pra homem” com Bart e lhe ensina três frases que o ajudarão a lidar com todo tipo de problema ao longo da vida. Uma delas é “já estava assim quando eu cheguei”. Foi o que me veio à cabeça quando o professor Carlos Alberto Souza fez sua palestra no Congresso Filosófico-Teológico do Seminário Maria Mater Ecclesiae, no fim do mês passado, na Grande São Paulo. Ele falou sobre os quatro modelos de relação entre ciência e fé na tipologia do grande Ian Barbour (conflito, independência, diálogo e integração), e lembrou que o modelo do conflito acaba sendo o mais popularizado porque, entre outros motivos, tem grande apelo entre os jornalistas, que preferem ver o circo pegar fogo a buscar os apaziguadores ou os que buscam integrar ciência e fé.

O professor Souza tem razão quanto a essa tendência do jornalismo. Mas, em defesa dos colegas, o que eu posso dizer é que “já estava assim quando nós chegamos”. Quando finalmente os veículos de imprensa começaram a dar alguma atenção mais consistente à relação entre ciência e religião, o paradigma do conflito já estava firmemente estabelecido dentro da academia, e os grandes popularizadores da ciência eram praticamente todos adeptos deste modelo, quando não eram abertamente hostis à religião. E, por fim, toda a fake history sobre ciência e fé, elevada ao estado da arte no fim do século 19 por John Draper e Andrew White, continuava (e continua) firme e forte na mentalidade popular, ainda que já estivesse em descrédito entre os especialistas em história da ciência.

Uso esse slide há alguns anos quando falo do estrago que Draper e White fizeram e ainda fazem, e sempre quis usar essa ilustração no blog. Imagem: Elaboração própria
Uso esse slide há alguns anos quando falo do estrago que Draper e White fizeram e ainda fazem, e sempre quis usar essa ilustração no blog. Imagem: Elaboração própria

Muitos anos atrás, o jornalista norte-americano Bernard Goldberg publicou Bias, um livro em que descrevia o viés de esquerda da imprensa de seu país. Li assim que foi lançado, e uma das coisas de que me lembro é sua afirmação de que há comportamentos que já são praticamente automáticos, em vez de deliberados. O jornalista esquerdista não acorda se perguntando o que ele vai fazer naquele dia para difamar o Partido Republicano, a Igreja Católica, o movimento pró-vida ou os conservadores em geral. O preconceito já é tão incrustado que a difamação sai sem o menor esforço e sem a mínima consciência de que estão fazendo algo errado. Eles leram e ouviram o tempo todo – na faculdade e nas redações – que os republicanos, os cristãos, os conservadores efetivamente são o mal encarnado e que só podem mesmo fazer besteira.

Pois com o modelo do conflito na imprensa é a mesma coisa. Todos crescemos ouvindo que ciência e fé são adversárias, que a Igreja queimou Galileu (ou chegou perto disso), que os medievais achavam que a Terra era plana, que o papa Fulano proibiu isso e que o papa Sicrano condenou aquilo, que Charles Darwin assim e assado, e a coisa toda ficou tão incrustada na cultura atual que o conflito agora é dado como certo, e a imprensa segue esse padrão automaticamente. É por isso que, quando vejo uma reportagem da revista Galileu de anos atrás sobre criacionismo nas escolas, e na qual o repórter só entrevista gente que perpetua a tese do conflito, eu me pergunto se o jornalista decidiu conscientemente não falar com ninguém que defende a conciliação entre Darwin e a fé cristã, ou se isso nem passou pela cabeça do jornalista porque, afinal, “todo mundo sabe” que não pode haver conciliação possível e, se por acaso existir alguém que defenda o diálogo, deve ser um sujeito tão fora da casinha que nem vale a pena procurar.

Não quero desculpar os colegas; especialmente os que cobrem ciência, ou religião, têm de estar atualizados sobre as discussões em suas áreas, e elas inevitavelmente incluem a relação entre ciência e fé. O discurso do conflito é prevalente na sociedade, é “a ideia que não morre”, como diz o título de um livro recente organizado por Jeff Hardin, Ronald Numbers e Ronald Binzley, mas isso nem de longe é justificativa para calar as outras vozes, nem mesmo de forma inconsciente. Quando o jornalismo ajuda a propagar o modelo do conflito, está espalhando a mentira, e aí nem o “já estava assim quando eu cheguei” ajuda a limpar a barra.

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