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O então cardeal Joseph Ratzinger, em foto de 1989; anos antes, ainda como arcebispo de Munique, ele dedicou quatro homilias ao tema da criação.
O então cardeal Joseph Ratzinger, em foto de 1989; anos antes, ainda como arcebispo de Munique, ele dedicou quatro homilias ao tema da criação.| Foto: R. Castro/EFE

Fico aqui pensando se os católicos de Munique tinham consciência do tamanho do privilégio que era poder ouvir as homilias de seu arcebispo, na época em que ele atendia pelo nome de Joseph Ratzinger. Por cinco anos, de 1977 a 1982, um dos maiores teólogos de seu tempo se dirigiu a esses fiéis em sua catedral, explicando verdades profundas de forma muito acessível. É a eles que Ratzinger, já morando em Roma, como prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, dedicou um pequeno volume que reúne quatro dessas homilias, feitas em 1981, e dedicadas ao tema da criação. Junto com um apêndice escrito anos depois por Ratzinger, elas formam In the Beginning... – A Catholic understanding of the story of creation and the Fall.

O objetivo das homilias é restaurar nos fiéis a importância da fé na criação – um conceito que, segundo ele, foi sendo paulatinamente desprezado em um processo que começou no Renascimento, passou pelo marxismo e chegou até os nossos dias, com motivações diferentes, que Ratzinger explora no apêndice; em resumo, essas motivações giram em torno do orgulho de um ser que se considera autossuficiente. Ele afirma que, atualmente, só se fala em “criação” dentro do debate sobre a compatibilidade entre criação e evolução – uma discussão que Ratzinger considera menos relevante, e que só aparece de passagem na terceira homilia, quando afirma que “não temos como dizer ‘criação ou evolução’, pois esses dois conceitos tratam de realidades diferentes. A história do pó da terra e do sopro divino, que acabamos de ouvir, não explica como os seres humanos surgiram, mas o que eles são (...) estamos diante de duas realidades complementares, em vez de mutuamente excludentes”.

“Ainda hoje a fé a criação não é irreal; ainda hoje ela faz sentido; mesmo considerando os dados das ciências naturais, ela é a ‘melhor hipótese’, oferecendo uma explicação que é melhor e mais completa que todas as outras teorias.”

Joseph Ratzinger, na homilia "Deus Criador", parte do livro "In the Beginning..."

As quatro homilias seguem a sequência dos capítulos iniciais do Gênesis. Na primeira, “Deus Criador”, Ratzinger defende que o conceito de criação permanece forte e necessário apesar da ideia tão comum quanto errada de que os desenvolvimentos científicos tornaram desnecessário pensar em criação. “A Escritura não pretende nos dizer como as diversas espécies de plantas apareceram gradualmente, ou como se formaram o Sol, a Lua e as estrelas. Ela pretende apenas nos dizer uma coisa: que Deus criou o mundo”. Essa é uma ideia que tinha várias consequências revolucionárias no Oriente Médio antigo, repleto de povos pagãos, cada um com sua cosmogonia, que envolvia inúmeros deuses, demônios, corpos celestes divinizados etc.

Ratzinger explica por que uma leitura não literal do relato da criação não enfraquece a crença na historicidade de outros trechos da Bíblia (especialmente dos Evangelhos); ressalta a necessidade de ler o Gênesis tendo em vista o todo da Escritura, especialmente o Novo Testamento (já repararam que o Gênesis e o Evangelho de São João começam com as mesmas palavras? Não é mera coincidência, diz Ratzinger); e arremata: “Ainda hoje a fé na criação não é irreal; ainda hoje ela faz sentido; mesmo considerando os dados das ciências naturais, ela é a ‘melhor hipótese’, oferecendo uma explicação que é melhor e mais completa que todas as outras teorias”.

Na segunda homilia, “O significado dos relatos bíblicos da criação”, o arcebispo de Munique aprofunda o tema da razoabilidade da fé na criação – afinal, é preciso ter mais fé para acreditar que tudo isso aqui existe por uma sucessão inacreditável e incrivelmente longa de coincidências que para crer em uma Razão criadora (apesar de Ratzinger usar o termo “projeto”, ele não está falando da divindade do Design Inteligente, movimento que nem existia em 1981). Em seguida, trata de uma série de aspectos simbólicos do relato da criação, como a ligação entre a estrutura do relato e o culto divino. E termina a homilia rebatendo uma alegação comum à época, e ainda frequente hoje, segundo a qual o cristianismo seria responsável pela degradação ambiental, já que Deus teria ordenado ao homem “submeter” a terra. Ratzinger mostra que a ordem divina é de cuidar, não de destruir algo que sabemos não ser nosso. Pelo contrário: é justamente quando o ser humano abandona Deus e a ideia de criação, proclamando-se dono de si mesmo e do planeta, é que ele se torna uma ameaça – inclusive ameaça a si próprio, como demonstra todo o discurso que descreve o homem como uma “praga” que deveria ser “controlada” ou até “exterminada” em benefício do meio ambiente.

O tema da terceira homilia é “A criação do ser humano”. Como afirmei, Ratzinger não se interessa aqui pelo aspecto biológico; esta é uma homilia sobre o que são os seres humanos: produtos do amor divino, desejados por Deus (ao contrário do que diziam outras cosmogonias do Oriente Médio); todos iguais em dignidade, sem categorias ou raças superiores ou inferiores, formando um único gênero humano; criados para reconhecer a amar a Deus, e para imitar Cristo, o perfeito homem; e portadores da imagem divina. Aqui Ratzinger lança suas críticas tanto ao cientificismo quanto ao might makes right (a ideia de que basta algo ser tecnicamente possível para que possa ser feito, do ponto de vista moral), aquele como causa e este como consequência da perda da noção de dignidade humana: se apenas o conhecimento científico é conhecimento verdadeiro, não há como “comprovar” a dignidade humana; e, se ela não existe, fica “permitido” fazer de tudo com o homem. O mesmo, aliás, vale para as concepções naturalistas do homem, que o veem apenas como um produto do acaso. Ratzinger responde:

“É tarefa das ciências naturais explicar como a árvore da vida em particular continua a crescer e dar origem a novos ramos. Isso não é assunto para a fé. Mas precisamos ter a ousadia de dizer que os grandes projetos da criação viva não são produtos do acaso, da tentativa e erro (...) eles apontam para uma Razão criadora e nos mostram uma Inteligência criadora, e o fazem hoje, mais que nunca, de forma mais luminosa e radiante (...) os seres humanos não são um engano, mas algo desejado; são fruto do amor (...) Sim, Pai, Tu me quiseste.”

Na última homilia, “Pecado e salvação”, Ratzinger também não se interessa por questões como monogenismo ou poligenismo, que fazem a festa (e a angústia) de quem se dedica ao diálogo entre ciência e religião, criação e evolução. O objetivo do arcebispo é denunciar a completa perda do sentido de pecado na sociedade contemporânea, que o substituiu pelo relativismo moral no qual o que é bom hoje pode não sê-lo amanhã, e vice-versa – ou, talvez ainda pior, no qual o critério é o agente: bem é o que eu e os meus fazemos, e mal é o que os outros fazem.

“É tarefa das ciências naturais explicar como a árvore da vida em particular continua a crescer e dar origem a novos ramos. Isso não é assunto para a fé. Mas precisamos ter a ousadia de dizer que os grandes projetos da criação viva não são produtos do acaso, da tentativa e erro.”

Joseph Ratzinger, na homilia "A criação do ser humano", parte do livro "In the Beginning..."

Ao lembrar o diálogo entre a serpente e Eva, Ratzinger explica que o demônio não faz o ser humano duvidar de Deus, mas da aliança que Ele estabeleceu com o homem; a aliança deixa de ser vista como um presente para ser considerada uma limitação à liberdade humana (aqui, Ratzinger retoma a crítica ao might makes right). “Os seres humanos não querem ser criaturas, não querem estar sujeitos a um padrão [de certo e errado, bem e mal], não querem ser dependentes de Deus”, afirma. Eis a origem do pecado original, e Ratzinger explica por que toda a humanidade sofre as consequências daquela rebeldia inicial: não fomos nós que a cometemos, mas ela nos diz respeito de maneira direta: “quando eu destruo um relacionamento, então este evento – o pecado – atinge a outra pessoa envolvida no relacionamento (...) no momento em que cada um inicia sua existência, o que é bom, ele se depara com um mundo danificado pelo pecado. Cada um de nós entra em uma situação na qual a capacidade de se relacionar está fraturada”. Apenas Cristo pode consertar esse estrago, e só aceitando o amor divino podemos recuperar a liberdade que consiste em depender de Deus.

Em 1989, discursando em um encontro das comissões doutrinais das conferências episcopais europeias, Ratzinger citou o “quase total desaparecimento da doutrina da criação na teologia” como um problema grave a enfrentar. O cardeal falou do “profundo desespero da humanidade atual, escondido sob uma fachada oficial de otimismo”, e de uma “silenciosa esperança de que um cristianismo renovado possa oferecer uma alternativa” a esse desespero. Mas isso só aconteceria se “o ensinamento sobre a criação for novamente desenvolvido. Tal tarefa, portanto, deveria ser tratada como uma das mais prementes missões da teologia hoje”. Humilde como só ele, Ratzinger só não disse que um certo arcebispo alemão, oito anos antes, fazendo homilias em sua catedral, já tinha assumido esse trabalho e mostrado o caminho a seguir.

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