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Tubo de Ensaio

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Ciência, religião e as pontes que se pode construir entre elas

Saúde mental

Quem diz se lembrar de vidas passadas tem mais sintomas de ansiedade e depressão, diz pesquisa

memórias de vidas passadas
Artigo cita mulher que, quando criança, entrava em pânico ao ouvir um avião. Ela diz ter lembranças de viver na Alemanha, em tempo de guerra. (Foto: Imagem criada utilizando Whisk/Gazeta do Povo)

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Pesquisadores da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) publicaram, no The International Journal for the Psychology of Religion, um perfil dos brasileiros adultos que afirmam ter memórias de vidas passadas, e descobriram que essas pessoas têm sintomas de ansiedade e depressão em proporções maiores que a média da população brasileira. A pesquisa foi a tese de doutorado da psicóloga Sandra Maciel de Carvalho, do Núcleo de Pesquisa em Saúde e Espiritualidade (Nupes) da UFJF, e o artigo também é assinado por Jim Tucker, da Universidade da Virgínia (EUA), e pelo psiquiatra Alexander Moreira-Almeida, coordenador do Nupes e orientador da tese.

Todos os 402 pesquisados tinham mais de 18 anos e apresentavam em comum o fato de afirmarem ter memórias de uma vida anterior. Alguns sinais comumente associados à possibilidade de uma suposta vida passada estavam presentes entre os pesquisados: 30% manifestavam preferências incomuns para a idade ou o contexto cultural; 54% tinham marcas ou defeitos de nascença, que poderiam corresponder à forma como a pessoa havia morrido na vida anterior; 71% manifestavam fobias durante a infância, e o mesmo número afirmou ter fobias persistentes ao longo da vida adulta.

Segundo os pesquisadores, os relatos dos entrevistados variam bastante em termos de local e época onde teriam vivido no passado, não são particularmente glamourosos, e normalmente envolvem algum sofrimento. O artigo menciona, por exemplo, uma mulher que, quando criança, entrava em pânico ao ouvir um avião, correndo para se esconder embaixo da cama e esperando explosões, como em um bombardeio. Sandra Carvalho ainda compartilhou com o Tubo de Ensaio excertos de relatos: as alegadas vidas passadas incluem um muçulmano que participou de um massacre de cristãos na Espanha, na Páscoa de 1477; um aviador da Primeira Guerra Mundial; uma mulher adúltera que se matou na Noruega após um ataque que acabou com a morte do marido; e um possível militar (o narrador não tinha certeza sobre esse ponto) soviético que vivia em embarcações fazendo anotações astronômicas.

Pesquisadores apontam várias hipóteses que explicam supostas lembranças de vidas passadas, mas não endossam nenhuma delas no artigo

Os pesquisadores descobriram que, enquanto a literatura científica está repleta de pesquisas associando crenças religiosas/espirituais a melhores níveis de saúde mental, entre o grupo específico de adultos que alegam ter tido vidas anteriores o resultado é inverso. Eles têm altíssimos índices de crenças em vida após a morte e na existência de realidades que vão além do mundo material, mas 46% dos entrevistados apresentavam sintomas indicativos de “transtornos mentais comuns” (CMD, na sigla em inglês), como ansiedade e depressão; e 39% tinham sintomas de estresse pós-traumático (TEPT). Em comparação, entre a população brasileira em geral a incidência de ansiedade é de 27%; de depressão, 13%; e de TEPT, 3,2% em uma pesquisa feita em São Paulo – esse número, no entanto, pode variar bastante: 42% dos gaúchos manifestaram estresse pós-traumático após as enchentes de 2024. Há algumas nuances: a presença de transtornos foi mais comum entre aqueles que reportaram medos ou preferências incomuns na infância. Além disso, quanto maior o nível de religiosidade ou espiritualidade do entrevistado, menor era a chance de ele apresentar algum sintoma de ansiedade, depressão ou TEPT – aqui, as conclusões estão de acordo com outras pesquisas sobre religiosidade e saúde mental.

Pesquisa não verificou veracidade das memórias, nem defende uma explicação específica para elas

Moreira-Almeida e Sandra Carvalho ressaltam que não se pode ler no artigo mais do que ele realmente diz. “Nós descrevemos muito bem nossos objetivos, métodos e resultados. Mas uma leitura incompleta, ou a partir do que se escreve sobre o artigo, enfatizando-se apenas um recorte da pesquisa, por exemplo, pode levar a conclusões equivocadas”, diz Sandra. “A pessoa lê apenas ‘memórias de vidas passadas’ e, dependendo do que ela acredita sobre isso, imediatamente acha absurdo um ‘estudo para comprovar a reencarnação’, ou diz ‘é claro que existe reencarnação, não é preciso pesquisar!’”, exemplifica a psicóloga. Mas o objetivo da pesquisa, afirmam os pesquisadores, é apenas o de analisar a saúde mental de adultos que afirmam ter tido vidas passadas – e, mesmo assim, Moreira-Almeida lembra que correlação não significa causalidade, ou seja: o fato de adultos com supostas memórias de vidas passadas terem índices maiores de sintomas indicativos de transtornos mentais não significa necessariamente que as memórias sejam a causa dos sintomas.

memórias de vidas passadasUm dos entrevistados na pesquisa narrou uma lembrança em que se perdia de seu esquadrão de aviadores, na Primeira Guerra Mundial. (Foto: Imagem criada utilizando Whisk/Gazeta do Povo)

O próprio artigo afirma que não era objetivo dos pesquisadores confirmar a veracidade das alegações (embora outras pesquisas tenham se dedicado a isso em casos específicos), muito menos o de endossar qualquer explicação para tais fenômenos. E as possíveis explicações são muitas, dizem Sandra e Moreira-Almeida, indo das mais corriqueiras às mais extraordinárias. “Nós temos hipóteses convencionais e hipóteses não convencionais. Entre as convencionais temos a fraude deliberada, em que a pessoa cria voluntariamente essa narrativa para ter algum outro ganho; ou então, que se trate de uma fantasia criada involuntariamente pelo inconsciente, com vários propósitos, como busca de consolo ou um mecanismo de defesa diante de dificuldades e problemas pelos quais a pessoa esteja passando”, diz Moreira-Almeida. Sandra acrescenta outra possibilidade para este fenômeno, quando observado em crianças: “pode haver erros de memória, quando a criança ouviu a história de vida de alguém, esqueceu e, ao recordar, acha que a história é sobre ela”.

Citando o trabalho de Ian Stevenson, pioneiro do estudo de memórias de vidas passadas em crianças, a psicóloga acrescenta que, em culturas onde a crença em reencarnação é muito prevalente, há uma “hipótese sociopsicológica”, na qual “a criança seria encorajada a falar cada vez mais sobre suas alegadas memórias de modo que seus pais pudessem encontrar a família da personalidade anterior. Trocadas informações sobre o caso, as famílias creditariam à criança muito mais conhecimento sobre a personalidade prévia do que ela realmente teria”. Sandra ainda menciona a possibilidade de percepção extrassensorial, somada à construção de uma personalidade prévia imaginária de cuja vida a pessoa alega se lembrar; e, ainda, a possibilidade de uma memória herdada, em casos que a criança alega ter sido um de seus antepassados. E, por fim, há a hipótese “de que essas sejam, de fato, memórias de uma suposta vida passada que estariam se manifestando agora desta forma”, diz o coordenador do Nupes.

Moreira-Almeida ressalta que o artigo não toma partido por nenhuma explicação, mas aponta um elemento de outras pesquisas sobre o assunto: “A maior parte dos estudos é feita com crianças, e encontramos um certo padrão nessas memórias, que começam muito cedo, com narrativas que frequentemente envolvem mortes violentas, e isso torna improvável que se trate de mera fraude ou uma questão cultural de alguns grupos, porque esses fenômenos se dão em grupos, populações e indivíduos que acreditam ou não em reencarnação”.

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Crença em reencarnação e alegadas memórias de vidas passadas são via de mão dupla

No artigo, os autores ainda mencionam uma influência mútua entre as alegadas memórias de vidas passadas e a crença em reencarnação: “Uma crença prévia na reencarnação pode levar as pessoas a interpretar memórias, marcas de nascença e comportamentos como sinais de uma vida passada; no sentido inverso, ter uma memória considerada proveniente de uma vida passada por levar à crença na reencarnação ou à filiação a religiões com doutrinas reencarnacionistas”, diz o texto. A esse respeito, os pesquisadores fizeram questão de ressaltar que a proporção de espíritas entre os entrevistados (54,5%) é muito maior que essa proporção na população brasileira (2%).

Sandra, no entanto, faz uma ressalva no caso específico dos espíritas: “costumamos imaginar que um ambiente amigável à ideia de reencarnação poderia favorecer a livre expressão e compartilhamento da experiência de memórias de vidas passadas. No entanto, o natural e socialmente esperado pelos espíritas é que a pessoa não se lembre de vidas passadas, para evitar sofrimento e facilitar a adaptação a uma ‘nova vida”, diz a psicóloga.

memórias de vidas passadas"Tenho lembranças de viver na Sibéria e também de viver ou passar épocas em embarcações marítimas fazendo registros das estrelas do céu em um caderno, vendo o mar e as estrelas durante a noite", disse um homem de 28 anos. (Foto: Imagem criada utilizando Whisk/Gazeta do Povo)

Talvez ainda mais digno de nota seja o fato de 93% dos entrevistados (ou seja, uma proporção bem maior que a de espíritas pesquisados) acreditarem em reencarnação. “Sim, a influência mútua entre crença em reencarnação e alegação de memórias de vidas passadas pode ocorrer mesmo, embora também seja possível que uma pessoa tenha essas memórias, que as sinta como sendo de uma vida passada, mas as ignore ou desqualifique porque contrariam a sua crença. Mesmo assim, a crença na reencarnação é muito disseminada para além do espiritismo; uma pesquisa Datafolha de 2007 apontava que 44% dos católicos ‘acreditam totalmente’ em reencarnação, assim como 15% dos pentecostais e 14% dos evangélicos não pentecostais”, diz Moreira-Almeida.

Congresso Latino-Americano de Ciência e Religião é gratuito para quem participar on-line e não quiser certificado

De 10 a 12 de setembro, o Pontifício Ateneu Regina Apostolorum, em Roma, recebe o XII Congresso Latino-Americano de Ciência e Religião. As inscrições ainda estão abertas, e o evento é gratuito para quem quiser assistir pela internet e não fizer questão de um certificado – você só precisará de uma boa dose de disposição, porque as atividades começam às 8 da manhã em Roma, ou seja, 3 da madrugada no horário de Brasília. Eu, felizmente, estarei presencialmente lá, e também por isso não teremos Tubo de Ensaio em 13 de setembro; estaremos de volta no dia 27.

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