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O bispo que abriu a ostra do mundo
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Perguntem a qualquer estudante universitário sobre os nomes da grande revolução científica que começou no século 17 e foi a responsável por grande parte da compreensão atual que temos sobre o universo, nosso planeta e nós mesmos. As personalidades irão se repetindo: Galileu, Kepler, Newton, Mendel, Darwin… quase ninguém lembrará o nome de Nicolau Steno. A não ser que você seja geólogo ou tenha estudado Anatomia na faculdade de Medicina, Enfermagem ou algum outro curso da área de saúde, é muito possível que nunca tenha ouvido falar dele; Steno é o (como dizem os americanos) unsung hero dessa revolução.

A primeira vez que vi alguma menção a Steno foi quando li Como a Igreja Católica construiu a civilização ocidental, de Thomas Woods Jr. Uma nota de rodapé citava uma biografia de Steno, chamada The seashell on the mountaintop (Penguin, 2004), escrita por Alan Cutler. É o livro que eu recomendo hoje aos leitores do blog, aproveitando que depois de amanhã se comemora o dia do geólogo.

Steno (ou Niels Stensen, como foi batizado em sua Dinamarca natal) fez fama em toda a Europa na segunda metade do século 17 como um dos maiores anatomistas do continente. Manejava um bisturi como poucos, e foi nessa condição que ele chegou a Florença e encontrou um lugar na corte do grão-duque da Toscana, Ferdinando II de Médici. Antes mesmo de se tornar famoso, fez descobertas que ainda hoje levam seu nome, e também viu o que a inveja científica pode fazer, quando seu ex-mestre tentou levar o crédito por esses achados. Como anatomista, Steno tinha seu futuro garantido, mas um acontecimento incomum mudou completamente a direção de sua vida.

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Nicolau Steno passou de anatomista de renome internacional a fundador da Geologia.

Um tubarão gigantesco foi capturado no litoral da Toscana e o grão-duque pediu que a cabeça fosse enviada a Florença, para ser dissecada por Steno. O anatomista percebeu a enorme semelhança entre os dentes do tubarão e as glossopetrae (“línguas de pedra”), que eram encontradas às vezes no alto de montanhas e tinham, acreditava-se, propriedades medicinais. Aliás, não apenas glossopetrae eram encontradas na altitude, mas também conchas e outros objetos que remetiam a animais marinhos. Steno não foi o primeiro a se perguntar o que realmente eram essas coisas, e como elas iam parar lá em cima; antes dele, muitos já tinham pensado nisso e oferecido suas respostas. Para uns, eram apenas pedras com formatos idênticos aos de conchas e dentes de tubarão; para outros, eram efetivamente objetos marinhos, e aí as teorias variavam ainda mais: foram deixados lá pelo Dilúvio, caíram do espaço, surgiram por geração espontânea…

O tema intrigou Steno, que passou a pesquisar como objetos sólidos podiam ser encontrados dentro de outros sólidos. Isso valia tanto para fósseis, conchas, glossopetrae, até para inteiras camadas de pedra. Como resultado de suas pesquisas, Steno abriu a ostra do mundo. Não com a espada, como o personagem de As alegres comadres de Windsor (citado por Cutler), mas com a cabeça. Chamá-lo de fundador da Geologia não é exagero nenhum. Sua obra De solido intra solidum naturaliter contento dissertationis prodromus (“Discurso prévio a uma dissertação sobre um corpo sólido contido naturalmente num sólido”, de 1669) lança as bases do estudo da terra. Diante de várias camadas de rocha, como saber quais vieram antes? Como essas camadas se formaram? Steno dará a explicação. Das diversas áreas em que a Geologia se dividiu com o tempo, as que mais se beneficiarão de seu trabalho serão a estratigrafia e a cristalografia.

Gabriel Bouys/AFP
O Grand Canyon é provavelmente o lugar do mundo onde melhor se pode entender, pela observação, as teorias de Steno.

Antes de Steno, o heliocentrismo já tinha redesenhado o universo, colocando a Terra girando ao redor do Sol. Agora o anatomista e geólogo dinamarquês colocava a própria Terra sob uma nova perspectiva: sua história podia ser contada analisando-se as camadas de rocha superpostas. Cutler afirma que, antes de Steno, acreditava-se que os homens podiam contar sua história recorrendo a documentos antigos, mas ninguém imaginava que o planeta tivesse uma cronologia. O cálculo do arcebispo anglicano James Ussher, para quem o mundo tinha sido criado em 4004 a.C., era amplamente aceito. Steno nunca estabeleceu datas para as diferentes camadas de rocha; ele se limitou a apontar os meios de saber a cronologia relativa das camadas. Mas é indiscutível que seu trabalho lançou as bases para que, no futuro, os cientistas descobrissem que o planeta tinha muito mais de 6 mil anos.

A biografia escrita por Cutler, no entanto, não se limita aos feitos científicos de Steno. Ela também ressalta a religiosidade do cientista. Criado como luterano, e convertido à Igreja Católica durante seu tempo na Itália, Steno via a presença de Deus na racionalidade do mundo, e seu trabalho como cientista, ao desvendar essa racionalidade, revelava os mecanismos divinos. E, em 1675, Steno foi ordenado padre, tornando-se bispo apenas dois anos depois. Ao entrar no sacerdócio, Steno abandonou as pesquisas científicas. Embora muitos possam ver nisso um sinal de incompatibilidade entre ciência e fé, Cutler esclarece que essa foi uma decisão pessoal de Steno. Era parte de sua personalidade não conseguir se dedicar com profundidade a duas coisas ao mesmo tempo. Mas Steno nunca rejeitou sua ciência, e Cutler conta casos de homilias em que Steno usava comparações científicas para explicar realidades espirituais. O jesuíta Atanásio Kircher tentou convencê-lo, sem sucesso, a continuar seu trabalho geológico – Kircher, aliás, é um dos coadjuvantes mais interessantes do livro. Hoje sabemos que muitas das teorias desse jesuíta alemão estavam erradas, mas é impossível desconsiderar a união entre ciência e religião quando vemos um padre movido pela curiosidade científica descendo a cratera do Vesúvio logo após uma erupção, segurado apenas por uma corda, para ver o que havia dentro da cratera do vulcão.

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Nicolau Steno foi enviado para o norte da Europa como bispo em terra de missão. Seu território incluía a Dinamarca, seu país natal.

The seashell on the mountaintop, no entanto, não termina com a morte de Steno, ocorrida em 1686. Especialmente na Inglaterra, a discussão sobre a origem das conchas encontradas em montanhas corria solta. A obra de Steno entrou em cena graças a outro coadjuvante curioso do livro de Cutler: John Woodward, um médico de personalidade intratável – e chegado em um plágio. Demorou um pouco, mas Steno conseguiu o pleno reconhecimento de seu gênio científico. E, em 1988, veio “o maior reconhecimento que ele teria desejado”, nas palavras de Cutler: o Papa João Paulo II o beatificou. Na homilia, o pontífice afirmou: toda a vida de Nicolau Steno foi uma incansável peregrinação à procura da verdade, a científica e a religiosa, na convicção de que cada descoberta, ainda que modesta, constitui um passo adiante na direção da verdade absoluta, na direção daquele Deus de quem todo o universo depende.

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Eu comprei meu exemplar de The seashell on the mountaintop na Amazon; parece que a livraria não tem mais a obra no estoque. Mas na Barnes & Noble custa US$ 15.

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Outros livros que já saíram no blog
O mundo assombrado pelos demônios (Carl Sagan)
Pilares do tempo – Ciência e religião na plenitude da vida (Stephen Jay Gould)
Galileu – Pelo copernicanismo e pela Igreja (Annibale Fantoli)

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