Da esquerda para a direita, Lorena Oviedo, Silvia Alonso, Daniel Blanco e Juan José Blázquez: debate sobre o futuro da pesquisa em ciência e religião na América Latina.| Foto: José Cacciabue/Ucasal
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Estive, no fim de setembro, na bela cidade argentina de Salta (sério, coloquem nas listas de viagem de vocês) para o XI Congresso Latino-Americano de Ciência e Religião, realizado na Universidade Católica de Salta (Ucasal). Já iam quatro anos desde o último evento presencial de que tinha participado, na Inglaterra, e 12 anos desde que estive na Cidade do México para o VI Congresso. Tive a impressão de haver menos gente que nos eventos anteriores dos quais participei – provavelmente ainda uma ressaca da pandemia, mas também não descarto que a triste situação econômica da Argentina tenha atrapalhado os planos de muita gente que, de outra forma, teria vindo. Mesmo assim, os debates e palestras foram excelentes, sobre o fim (temporalmente falando) e a finalidade (filosoficamente e teologicamente falando) do universo.

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Estive lá para falar tanto do Tubo de Ensaio quanto do meu livro de entrevistas recém-lançado. Isso porque o congresso também abriu espaço para que pudéssemos apresentar várias iniciativas no campo do diálogo entre ciência e fé e que estão sendo levadas a cabo na América Latina. E como tem coisa boa sendo feita! Pudemos conhecer o Instituto para a Integração do Saber (Ipis) da Ucasal, o Instituto de Filosofia da Universidade Austral (Argentina), o Instituto Ciência e Fé da PUCPR, o Centro de Estudos de Ciência e Religião (Cecir-México), a Fundação Diálogo entre Ciência e Religião (Decyr-Argentina), e o Seminário Permanente de Teologia, Filosofia, Ciências e Tecnologia da Universidade Católica Argentina. Como faixas bônus, ainda tivemos a apresentação de centros de pesquisa em países europeus de cultura latina, como o Grupo Ciência, Razão e Fé da Universidade de Navarra (Espanha), o Seminário de Teologia e Ciências de Barcelona (Espanha), o Centro de Documentação Interdisciplinar de Ciência e Fé (Disf-Itália), o Instituto Ciência e Fé do Ateneu Pontifício Regina Apostolorum (Itália) – meu sonho é fazer o mestrado deles – e a Cátedra Hana e Francisco Ayala de Ciência, Tecnologia e Religião da Universidade Pontifícia Comillas (Espanha).

Vendo a qualidade do trabalho que está sendo feito por aqui, percebo que estamos recuperando espaço em comparação com o mundo anglo-saxão, onde esse tema vem sendo debatido há bem mais tempo. Vejo isso também no mercado editorial: se até pouco tempo atrás quase tudo o que tínhamos eram traduções de autores europeus ou norte-americanos, hoje a produção local está em franco crescimento. Na Argentina, a Austral publicou uma coleção que mescla nomes estrangeiros e argentinos, e a editora da Ucasal acaba de lançar uma série com autores nacionais. No Brasil, a Associação Brasileira de Cristãos na Ciência, depois de lançar três coleções traduzindo obras excelentes e fundamentais, agora busca talentos brasileiros por meio do programa Radar ABC2. Mas para onde vamos a partir daqui?

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Vendo a qualidade do trabalho que está sendo feito por aqui, percebo que estamos recuperando espaço em comparação com o mundo anglo-saxão, onde a relação entre ciência e fé vem sendo debatida há bem mais tempo

Esse foi um dos temas da última mesa do congresso, da qual participaram Lorena Oviedo (Decyr), Juan José Blázquez Ortega (Cecir), Silvia Alonso (UCA) e Daniel Blanco, da Universidad Nacional del Litoral e da Universidad Autónoma de Entre Ríos (Argentina). Da conversa surgiram três grandes desafios para que não percamos o embalo: envolver as universidades públicas (na verdade, qualquer instituição de ensino não confessional); engajar também os não crentes; e atrair mais jovens – neste caso, perguntei depois a Blázquez e ele me esclareceu que falava tanto de conseguir que mais jovens se interessem pelo assunto quanto de “renovarmos” o elenco de pesquisadores no ambiente acadêmico.

Universidade ainda não entendeu que pesquisa em ciência e fé não é proselitismo

Talvez o engajamento com as universidades não confessionais seja o aspecto específico em que estamos mais atrasados em comparação com o mundo anglo-saxão. Cambridge e Oxford são públicas, e isso não impede que ambas tenham institutos de pesquisa em ciência e religião – respectivamente, o Faraday e o Ian Ramsey – que hoje são referências mundiais. Saindo do mundo universitário, a Associação Americana para o Avanço da Ciência (AAAS) tem um departamento específico dedicado ao diálogo com as comunidades religiosas. E por aqui? Sei que o México tem uma história de laicismo exacerbado, que pude perceber quando o congresso de que participei na capital mexicana em 2011 teve de ser mudado de lugar às pressas por causa de uma revolta de professores e alunos na Unam, que é pública. Mas aqui no Brasil não é muito diferente; apesar de a Constituição prever o sistema de laicidade colaborativa no seu artigo 19, na prática temos um laicismo velado, ao menos no ambiente universitário-científico; só faltam mesmo as ameaças de agressão física. Até onde eu sei, a universidade pública brasileira que tem as portas mais abertas para esse tema é a Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), onde funciona o Núcleo de Pesquisa em Espiritualidade e Saúde, mas ela é exceção; a regra são episódios como os que já registrei aqui no Tubo: o cancelamento de um evento criacionista na Unicamp, em 2013, e de um Curso Faraday na Poli-USP, em 2014; e, mais recentemente, a recusa do Museu Oscar Niemeyer em sediar a conferência nacional da ABC2. Além disso, o “Grupo de Trabalho Estado Laico” da SBPC é mais laicista que laico.

Essa atitude é de uma miopia sem tamanho. É preciso dar um salto lógico gigantesco para imaginar que se está privilegiando alguma fé específica ou fazendo proselitismo religioso quando na verdade se está discutindo, com rigor acadêmico, a possibilidade de construção de pontes entre o saber científico e as diferentes religiões – aliás, arrisco dizer que o debate sobre ciência e fé se dá com muito mais rigor acadêmico que boa parte da bobajada que se produz atualmente com dinheiro do contribuinte brasileiro. A hostilidade do mundo acadêmico a qualquer coisa que cheire a religião já foi apontada por autores como Chris Mooney e Sheril Kirshenbaum como um dos fatores que elevaram a indiferença ou mesmo a desconfiança da população em relação à ciência.

Isso nos leva ao segundo desafio, porque não há milagre que faça um não crente se engajar na pesquisa sobre ciência e fé se esse não crente tiver desprezo ou até ódio pela religião. A própria natureza desse campo faz dele algo muito mais atrativo para quem tem fé, embora haja “subcampos” que são exceções – por exemplo, na pesquisa em história da relação entre ciência e religião, tivemos o grande Ronald Numbers, que era agnóstico, e foi citado em algum momento do congresso pelo Ignacio Silva, da Austral. De resto, parece-me que só vão entrar neste debate aqueles que, mesmo não crendo, têm respeito pela religião e pelos religiosos, como é o caso de outro agnóstico, o astrofísico Marcelo Gleiser.

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Jovens estão interessados, mas boletos não se pagam sozinhos

Por fim, como trazer mais jovens para essa conversa? Eu vejo sinais positivos. Semanas atrás, o grupo de jovens da paróquia que frequento me convidou para uma palestra. A experiência foi extraordinária. Gastei uns poucos minutos apenas apresentando os quatro modelos de Ian Barbour, mas o resto do tempo dediquei àquilo que eles consideravam interessante; havia pedido que me mandassem perguntas com antecedência, e ali na hora ainda surgiram outras. A conversa foi tão boa que estouramos bastante o tempo que esses encontros costumam ter. Comprovei na prática o que Guy Consolmagno recomendou anos atrás. Admito que é uma evidência anedótica que pode não representar uma tendência geral, mas, quando temos pesquisas mostrando que os mais jovens estão começando a ter uma visão mais positiva da relação entre ciência e fé em comparação com a média da população, há esperança.

Mas despertar o interesse dos jovens para o diálogo entre ciência e religião é diferente de atrair um jovem pesquisador para que faça carreira acadêmica nesse campo. E, como o mundo acadêmico é algo bem distante da minha realidade, perguntei a quem está inserido neste ambiente o que precisa ser feito. Antes de tudo, diz Juan José Blázquez, do Cecir, é preciso haver uma divulgação adequada do tema. Mas o maior desafio, segundo os especialistas com quem conversei, é que esta carreira exige um grau de interdisciplinaridade que pouca gente está disposta a encarar nesta era de hiperespecialização. “Os teólogos não gostam de tratar de áreas de desconhecem. Eu já tive problemas em aulas de Teologia, em que os alunos me perguntavam: ‘por que temos de estudar Biologia se viemos aqui para estudar Teologia?’. Da mesma forma, os cientistas, em sua grande maioria, não querem sair de sua especialidade, não querem saber nada de filosofia, nem de história da ciência”, afirma o padre Lucio Florio, do Decyr. “É tarefa do professor ajudar os jovens a superar preconceitos, informá-los bem sobre ambas as maneiras de abordar a realidade. Deixar-se interpelar mutuamente é o desafio, ainda que não seja algo fácil”, diz Verónica Figueroa, do Ipis-Ucasal.

As faculdades deveriam ter disciplinas que fizessem a intersecção entre ciência e fé, tanto nos cursos de ciências (Biologia, Física etc.) quanto nos de Teologia ou Filosofia, sugere Verónica Figueroa

Como passo prático no sentido de criar esse ambiente propício ao diálogo, Florio sugere que o tema já comece a ser tratado antes da faculdade. “O diálogo tem de começar no ensino fundamental e médio – como propõe Lorena Oviedo, que escreveu um livro sobre ciência e religião na escola –, e também na catequese ou na formação religiosa. Isso proporciona uma visão fundamental, que impede esses jovens de serem seduzidos pela tese do conflito no futuro”, afirma o sacerdote. Mas não podemos parar aí; o jovem pesquisador precisa ver neste campo não apenas uma forma de satisfazer uma curiosidade, mas de fazer carreira nele – e pagar seus boletos. Verónica Figueroa afirma que as faculdades deveriam ter disciplinas que fizessem essa intersecção entre ciência e fé, tanto nos cursos de ciências (Biologia, Física etc.) quanto nos de Teologia ou Filosofia. “Se não for possível, que houvesse ao menos uma cátedra aberta sobre esses temas, como faz a Universidade Católica de Córdoba, que tem a cadeira de Ciência, Religião e Educação, dirigida por José Funes, ex-diretor do Observatório Vaticano”, exemplifica.

Blázquez, do Cecir, destaca como essencial “o apoio institucional aos jovens pesquisadores, por meio de centros, institutos, universidades, igrejas, bem como o apoio financeiro internacional”. Felizmente, as universidades confessionais (o que nos traz de volta ao primeiro desafio) estão acordando para a importância do diálogo entre ciência e fé como um dos grandes temas do século 21, e há canais importantes de financiamento, com instituições dispostas a bancar bons projetos. “Por isso quisemos que este congresso tivesse o espaço de apresentação de iniciativas e centros de estudo: para que os jovens acadêmicos pudessem saber a quem procurar, caso eles sintam o desejo de seguir neste caminho”, acrescenta Figueroa, do Ipis.

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Na próxima coluna, uma entrevista com José Funes

O padre José Funes, doutor em Astronomia e ex-diretor do Observatório Vaticano (depois de George Coyne e antes de Guy Consolmagno), foi um dos principais nomes do XI Congresso Latino-Americano de Ciência e Religião. Pudemos conversar um pouquinho em um dos intervalos do evento, e essa conversa você verá aqui no Tubo de Ensaio daqui a duas semanas.

Infográficos Gazeta do Povo[Clique para ampliar]