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Quando a pergunta é tão importante quanto a resposta
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Estou lendo a “trilogia de 5 livros” do Mochileiro das Galáxias e uma das coisas divertidas da história é a ideia de que não adianta nada saber a resposta sem saber qual é a pergunta (não posso contar mais para não estragar a leitura). Lembrei disso quando vi alguns artigos no Guardian, escritos pelo editor da Philosophers’ Magazine, Julian Baggini, e pelo professor de Oxford Keith Ward. Não chega a ser um debate, pois Baggini escreveu vários artigos, Ward respondeu a apenas um deles e não houve réplica, pelo menos até o momento.

No primeiro artigo, Baggini alega que é um pouco simplista afirmar que a ciência se preocupa apenas com o “como?” e a religião se preocupa apenas com o “por quê?”, e que basta separar os escopos de uma e de outra para que haja a convivência pacífica. Basicamente, é nisto que se resumia a teoria dos Magistérios Não Interferentes de Stephen Jay Gould. Mas Baggini afirma que a religião, ao fazer perguntas sobre os porquês da existência e colocar Deus como a resposta, se intromete no campo da ciência ao introduzir nela um agente não científico. E aqui não estamos nem falando do Deus das lacunas, e sim de questões como o propósito ou significado do universo. Para Baggini, agir assim é fazer afirmações sobre o “como” o universo se tornou o que é hoje, ou seja, invadir o campo da ciência. Assim o “como?” e o “por quê?” acabam misturados, por exemplo quando se diz que Deus “armou” as coisas para que fossem do jeito como são, para atingir um determinado objetivo.

Então, é preciso saber até que ponto uma religião faz afirmações sobre a natureza. “Se for uma religião que procura explicar os ‘comos’ do universo, ou acaba fazendo isso de modo camuflado, então ela compete com a ciência, e nesses confrontos a ciência sempre vence facilmente”, diz Baggini. “Se for uma religião que não tenta explicar os ‘comos’ do universo, então ela precisa tomar muito cuidado para não fazer nenhuma alegação que termine provocando exatamente isso. Só então o debate sobre ciência e religião pode prosseguir”, completa.

Baggini publicou, a seguir, dois outros textos bem interessantes: o de 21 de outubro é um alerta para o ateísmo militante, que poderia estar transformando a ciência em seu salvador (e, no fim, apenas substituindo uma divindade por outra); o de 28 de outubro mostra a esquizofrenia a que certo tipo de pensamento liberal/politicamente correto pode levar, em que a aversão a verdades objetivas faz as pessoas tolerarem praticamente qualquer coisa, ainda que vá contra suas convicções; elas só não toleram afirmações com a pretensão de descrever uma verdade. Mas é aquele primeiro texto que Keith Ward pretende responder ao afirmar que a religião responde a questões factuais que a ciência deixa de lado. “Precisamos nos perguntar se certas alegações religiosas e científicas entram em conflito, ou se essas alegações se apoiam ou se excluem. Cada caso é um caso, e seria estúpido dizer que todas as afirmações de caráter religioso se chocam com todas as afirmações de caráter científico, ou o inverso disso”, afirma Ward, que também rejeita a tese de Gould sobre os Magistérios Não Interferentes.

Reprodução
“A cura do homem cego”, de Duccio di Buonisegna (1308-11): os milagres são afirmações factuais feitos pela religião, mas que desafiam o conhecimento científico.

Ward chega a dar exemplos, tirados do Evangelho, de afirmações que “invadiriam” o campo científico: por exemplo, a ressurreição ou os milagres de Jesus. Mas aí eu acho que Ward se perde um pouco, porque ele passa a explicar que nem toda afirmação factual é cientificamente testável; ele tem razão, mas não me parece que seja essa a crítica de Baggini. O “problema” de afirmar que alguém ressuscitou não é o fato de ser uma afirmação “não testável”, e sim o fato de contradizer a ciência, para quem pessoas não ressuscitam. De fato, a questão da ação divina no mundo é um dos temas de intersecção entre ciência e fé (e um dos mais intrigantes, na minha opinião), mas Ward parece se desviar dela para enfocar um aspecto secundário.

A segunda crítica de Ward a Baggini tem a ver com a suposta “interferência” da religião na ciência ao introduzir elementos como propósito ou um “agente não científico”. Ward afirma que as afirmações desse tipo feitas pela religião são respostas a questões que a ciência não faz. Não deixam de ser questões factuais: ou o universo foi criado por Deus, ou não foi; ou o universo tem um propósito, ou não tem. “As ciências naturais geralmente não tratam de fatos não físicos, ou não ligados a leis, como a criação divina. Isso não significa que essas questões sejam sem sentido, ou que não haja maneiras racionais e estúpidas de respondê-las. Alegações de que o universo é criado não ‘se intrometem’ em terreno científico. Essas são afirmações nas quais pesquisadores científicos, enquanto tais, não estão interessados”, diz Ward. Essa contestação já faz muito mais sentido; questões especialmente sobre a existência de um propósito na natureza são de caráter muito mais filosófico que científico.

Um PS: ontem, Baggini publicou um novo texto. Não é uma resposta a Keith Ward, mas também é bem interessante ao mostrar que muita gente envolvida no debate sobre a religião sabe muito pouco sobre a posição contrária à sua, mas que o argumento do “você não entende” vem sendo utilizado de forma errada; é preciso explicar exatamente o que os outros não estão entendendo, do contrário o debate fica paralisado.

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