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O Jardim do Éden na visão de Jacopo Bassano: o homem é fruto do amor de Deus, ao contrário do que ocorre nas mitologias do Oriente Médio. (Imagem: Reprodução)
O Jardim do Éden na visão de Jacopo Bassano: o homem é fruto do amor de Deus, ao contrário do que ocorre nas mitologias do Oriente Médio. (Imagem: Reprodução)| Foto:

E continuamos falando de Tremper Longman III, especialista em Antigo Testamento que deu duas palestras na conferência nacional da Associação Brasileira de Cristãos na Ciência, no início deste mês. Além de organizador do Dicionário de Cristianismo e Ciência, recém-lançado, Longman também é autor de diversos outros livros, incluindo Como ler Gênesis (editora Vida Nova), que comprei durante o evento e terminei de ler. Nele, o autor nos oferece uma série de chaves interessantes para entender este que é um dos livros mais enigmáticos da Bíblia, com uma série de relatos fantásticos: serpentes falantes, chuvas que cobrem toda a Terra e pessoas que vivem várias centenas de anos são apenas uma fração do que se encontra ali.

Mas, antes, explico o que o livro de Longman não é. Não é, por exemplo, um livro sobre o debate entre criacionismo e Teoria da Evolução. Também não é um livro que se debruce apenas sobre o relato da criação – para isso temos as obras de John Walton, como O mundo perdido de Gênesis 1 e O mundo perdido de Adão e Eva (este último, traduzido pela Ultimato em parceria com a ABC2) –, embora também trate dele. Nem é um livro com a pretensão de responder a perguntas do tipo “o dilúvio foi local ou universal?”, ou “Adão e Eva eram pessoas reais ou símbolos de uma primeira comunidade humana?”. O objetivo é ajudar o leitor a compreender melhor o Gênesis em sua integridade, conhecer o contexto no qual o texto sagrado surgiu e, com isso, capturar de forma mais adequada as mensagens que ele encerra.

Tremper Longman III, autor de Como ler Gênesis

Para Tremper Longman, o relato da criação não foi escrito para ser contraponto às teorias científicas modernas, mas à mitologia dos povos do Oriente Médio que cercavam os hebreus. (Foto: Adriano Fros/Divulgação/ABC2)

Para isso, Longman propõe quatro princípios: o primeiro é reconhecer a natureza literária do Gênesis: é “mito, parábola, história, lenda ou uma combinação desses e de outros gêneros”? Quem o escreveu? Como comparar o Gênesis com a literatura dos povos da mesma região? Depois, examinar o contexto histórico do livro: quando o Gênesis foi escrito? O que ele nos diz sobre o passado? Em que o conhecimento que temos sobre a região do Oriente Médio nos ajuda a compreender o livro em termos de história e costumes? Em terceiro, refletir sobre o ensino teológico do livro: o que o Gênesis nos diz sobre Deus? Como ele descreve a relação entre Deus e seu povo? Como o Gênesis se encaixa no conjunto da Bíblia? O que segue sendo “teologicamente normativo” hoje? E, por fim, refletir sobre nossa situação, a situação de nossa sociedade e a situação global: qual é o meu relacionamento com os acontecimentos históricos do Gênesis, e o que posso aprender com o livro a respeito de como agradar a Deus? Como evitar impor nossas próprias ideias ao que o livro diz?

Uma das primeiras observações que Longman faz é a de que existe, sim, uma intencionalidade histórica no Gênesis; quem deseja classificá-lo como mero mito é movido por preconceitos modernos, como se só houvesse uma forma de escrever história. O Gênesis, no caso, é “história teológica”. E isso nos leva ao relato da criação, pois não é de nosso interesse aqui nos debruçar sobre outros temas tratados por Longman no livro, como as histórias dos patriarcas; eles são bastante interessantes, mas fogem do nosso escopo.

Capa do livro Como ler Gênesis

Imagem: Divulgação

A primeira tentação a evitar é achar que o relato da criação foi escrito tendo esse nosso mundo do século 21 em mente. Como disse Longman em uma de suas palestras na conferência da ABC2, “a Carta aos Romanos não se chama ‘aos Romanos’ à toa”. Sim, a Bíblia toda foi escrita para nós, para todas as pessoas de todos os tempos, mas vários de seus livros só podem ser adequadamente compreendidos se aceitarmos que eles estão dirigidos de forma mais específica a um certo público-alvo. No caso de Gênesis 1 e 2, existe um motivo para o autor sagrado não estar preocupado em dar detalhes sobre a natureza dos dias da criação ou de como foram surgindo as espécies: “o relato bíblico da criação não foi escrito para se contrapor a Charles Darwin ou a Stephen Hawking”, afirma Longman (p. 82). O propósito era bem diferente, o de combater outras concepções da criação que eram amplamente difundidas no Oriente Médio naquela época, especialmente os relatos egípcios, mesopotâmicos e cananeus.

Na mitologia dos povos vizinhos, para começar, há sempre vários deuses envolvidos e em conflito uns contra os outros. Normalmente, os relatos dos outros povos começam com a matéria já existente. Além disso, a criação do homem costuma ter conotações negativas: ou o homem surge da mistura da terra do sangue de um deus-demônio, e ou é criado para substituir deuses menores em um trabalho desagradável. As comparações servem, também, para derrubar o preconceito segundo o qual os hebreus apenas pegaram os relatos de povos vizinhos e os adaptaram (uma observação que também se aplica à narração do dilúvio, aliás); é muito mais que isso: trata-se de descrições rivais.

Deus criando o universo

Na cosmogonia do Gênesis, Deus é o criador de tudo o que existe, enquanto em outros relatos os deuses criam a partir de matéria já existente. (Imagem: Reprodução)

O que o relato da criação do Gênesis precisava passar ao leitor hebreu, bombardeado de todos os lados por outras concepções, era: que só existe um Deus, todo-poderoso; que Ele criou o universo, e tudo o que existe depende dEle; que fez o ser humano em um ato de amor; que o homem tem um relacionamento especial com Deus, e foi feito para ser senhor da natureza e protegê-la; que o trabalho é algo bom e querido por Deus, assim como outras duas instituições, o casamento e o dia do descanso; enfim, que toda a criação é boa, e o mal vem de outra fonte. É uma “carta de princípios” sobre Deus, sobre o mundo e sobre nós. Aqui está o essencial dos primeiros capítulos do Gênesis; usá-lo para atacar teorias científicas atuais é, diz Longman, “forçar o texto dizendo coisas que o próprio texto não teve a intenção de mostrar” (p. 129). Afinal, “ela [a passagem bíblica] não está interessada em narrar o processo de criação. Pelo contrário, seu objetivo é simplesmente celebrar e declarar o fato de que Deus é Criador” (p. 127).

O leitor que não está interessado apenas na interpretação dos capítulos iniciais do Gênesis vai encontrar, na obra de Longman, várias outras ideias interessantes que permeiam o livro sagrado, como o fato de Deus sempre estar buscando a reconciliação com o homem depois das nossas seguidas desobediências, ou as “antecipações” da Redenção prenunciadas ao longo do Gênesis. Os católicos perceberão logo no início que a abordagem de Longman a respeito da interpretação da Bíblia se baseia nos princípios protestantes, e lamento que ele tenha reproduzido algumas concepções equivocadas sobre a relação da Igreja Católica com a Bíblia; fora isso, Como ler Gênesis é bastante informativo e agradável.

Pequeno merchan

Além de editor e blogueiro na Gazeta do Povo, também sou colunista de ciência e fé na revista católica O Mensageiro de Santo Antônio desde 2010. A editora vinculada à revista lançou o livro Bíblia e Natureza: os dois livros de Deus – reflexões sobre ciência e fé, uma compilação que reúne boa parte das colunas escritas por mim e por meus colegas Alexandre Zabot, Daniel Marques e Luan Galani ao longo de seis anos, tratando de temas como evolução, história, bioética, física e astronomia. O livro está disponível na loja on-line do Mensageiro.

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