Há algum tempo o casal Andrea Petrini e Alexandra Swenden sacodem o cenário da gastronomia internacional com seus eventos. Tudo começou nas festas da premiação do The World’s 50 Best Restaurants. A primeira em 2013, com garçonetes de topless. Um arrojo.
A proposta inicial deles de provocar e divertir deu filhotes mais robustos com os chamados “shuffle Gelinaz” – as trocas de cozinheiros que deixam seus restaurantes para assumir outro em algum lugar desconhecido.
Compartilhar conhecimento e testar limites fazem parte do jogo que reúne chefs famosos, como René Redzepi e Massimo Bottura, e outros nem tanto assim.
Curitiba, Nova Iorque, Londres, Austrália
No dia 10 de novembro, 40 chefs no mundo todo participaram do Shuffle Gelinaz 2. Em Bruxelas, acontecia, ao mesmo tempo, o Gelinaz Head Quarters (HQ), onde 20 outros chefs reinterpretavam 40 receitas daqueles que estavam mudando de lugar, culminando, então, com um jantar de 60 chefs, que durou 24 horas e deu a volta ao mundo.
Manu Buffara (foto), do restaurante Manu, ao lado de Alex Atala, do restaurante D.O.M., representaram o Brasil. Ela foi parar em Nova Iorque, no restaurante Luksus, e apresentou Curitiba para o mundo. Feito inédito. Ele foi para o Momofuku Seióbo em Sydney, na Austrália.
Ninguém menos do que Albert Adrià e Léo Pereira no HQ apresentaram a versão deles para a couve-flor, leite de castanha e bottarga da chef paranaense, um tributo ao restaurante que a recebia.
Segredo revelado: Lee Tiernan
Cada lugar tem um jornalista embaixador que recebe, ao lado da equipe do restaurante, o chef que vem de fora. Sigilo absoluto até o dia da revelação faz parte do contrato. Aqueles que compraram o jantar não poderiam saber quem viria cozinhar.
Quem viveu a vida da Manu aqui por seis dias foi Lee Tiernan, do restaurante Black Axe Mangal – BAM, em Londres. Com certeza, um desconhecido para a maioria das pessoas daqui. Com certeza, um talentoso cozinheiro, nada convencional, provocador, mas verdadeiro e intenso em seguir sua proposta e seus valores.
Tiernan entrou na cozinha por acaso, não tem formação acadêmica na área, porém, muita experiência. Depois de conhecer a comida de outros países, foi o chef por 10 anos do restaurante Bread & Wine, segundo endereço de Fergus Henderson, do St. John, em Londres.
Henderson fez fama com o movimento “nose to tail”, ou seja, o aproveitamento de todo animal. Tiernan assimilou o conceito.
Quando saiu do Bread & Wine viajou para “arejar a cabeça e buscar inspiração”. A partir daí o sucesso veio por acaso e pela boa comida, claro. Abriu um pop-up em Copenhague por dois meses, que teve filas quilométricas.
O nome com sonoridade para ser uma banda de rock era uma brincadeira que pegou, assim, Black Axe Mangal foi para Londres e está dando certo lá também. É um restaurante pequeno de 22 lugares, informal. No site, apenas o endereço e o horário de funcionamento, como é comum em alguns novos empreendimentos europeus.
Tiernan poderia ter entrado para a alta gastronomia, com um restaurante autoral. Seguiu um caminho oposto. “Quem pode pagar uma refeição nos melhores restaurantes do mundo?”, dispara, querendo provocar reflexão, mas ressaltando que respeita todas as opções.
Sua cozinha recebe influência de vários locais – ele pensava, e ainda pensa, em abrir uma casa só de kebab. Mangal é o nome da grelha turca. O chef, que adora falafel, entre outros pratos, mistura temperos e gosta de provocar com o uso de pimentas, capaz de deixar baianos assustados.
A comida no BAM vem em grandes porções, que são maiores nos fins de semana para serem divididas. A presença de traços do restaurante Mission Chinese Food de São Francisco também é bem visível. Ele faz questão de falar. Copia boas ideias, “todo mundo faz isso”, declara sem pudor.
Enfim, seu restaurante é nada pretensioso e barato. Futuro? Ele apenas pensa em continuar trabalhando, fazendo boa comida, viajar e quem sabe ter mais um filho, já tem três.
O jantar
O clima de suspense marcou o início do jantar, com os convidados entrando todos juntos no escuro e com música alta – a mesma trilha sonora era tocada em todos os 40 restaurantes.
Atrás deles um desconhecido e tatuado, vestindo a camisa do Brasil e boné, rosto coberto com a marca do grupo Kiss. Ele é fã da banda, imagens do Kiss estão até no forno do seu restaurante. O misterioso chef finalmente era revelado.
Tiernan usou produtos locais, adaptando suas receitas, porém, não descartou sua marca com molhos e temperos orientais. Diferentemente do que é servido no Manu, os pratos eram fartos e intensos. Muita pimenta e temperos industriais de qualidade, com boa dose de criatividade, resultaram em um diferente e exótico jantar.
Recepção
Primeira saída do chef: visitar os produtores de Palmeira. A chef Rosane Radecki, dos restaurantes Girassol e Alecrim, recebeu com a especial atenção de sempre. Aliás, isso se repetiu em todos os outros restaurantes que o chef foi.
Sim, ele comeu “pão no bafo”, prato típico do município. Conheceu o queijo purunguinho, outro patrimônio da região, e o trabalho do Cláudio Oliver, coordenador da Casa da Videira.
Na sede da Casa da Videira, ajudou inclusive a separar ingredientes do supermercado local que seriam descartados e viu como os porcos são criados, conhecendo o trabalho de resgate da raça Moura. Um dos porcos de lá foi servido no jantar que ele preparou no Manu.
Ainda deu tempo de fazer pizza e trocar informações com Renê Seifert Jr., do Pão na Casa. Tiernan também trabalha com fermentação natural. Pão é coisa séria para ele.
Em Curitiba, o chef visitou o Mercado Municipal de Curitiba e as feiras locais. Adorou o nosso pastel, o açaí que usou no pão – o primeiro prato do jantar –, o palmito, a farinha e os cogumelos, apresentados pelo especialista Francisco Vítola na churrascada. Deixou a jabuticaba de lado e preferiu pitanga e pimenta biquinho.
Eva dos Santos, do Bistrô do Victor, mostrou que entende tudo de brasa, Tiernan também usa forno à lenha e carvão no seu restaurante. A chef serviu várias especialidades da casa, com frutos do mar, além de rabada, costela e o seu famoso cheese cake.
O almoço de despedida ficou por conta da nossa embaixadora ativista da agrobiodiversidade Gabriela Carvalho, do restaurante Quintana. Tiernan conheceu e levou para casa o mel das abelhas nativas sem ferrão, experimentou as caipirinhas do Baiano, provou falafel, acarajé e os vários tipos de feijões, além de outros pratos que a chef serve.
Além de alguns chefs locais, a equipe do restaurante Manu, a família da chef paranaense, cervejeiros e produtores que ajudaram a receber Tiernan, a arquiteta/blogueira/cozinheira vegetariana Gabrielle Emily Mahamud foi uma colaboradora especial. Gabi fez um pouco de tudo, até a maquiagem dele e da equipe do Manu no dia do jantar. O clima “punk rock” ao estilo do chef não poderia faltar.
Os pratos
Tiernan mostrou um pouco da culinária que pratica em Londres, com a fusão de várias culturas. No dia do jantar, usou a camisa da seleção brasileira, que ganhou da chef Eva dos Santos.
Um dos representantes da mais pura vanguarda da culinária internacional, Tiernan apresentou uma comida simples, autêntica, com fusão de culturas e sabores. Uma forte corrente que surge na Europa. Ingredientes baratos usados com muita criatividade e técnica e sabores fortes. Alguns amam, outros odeiam, ele segue firme sem parecer se importar. Laconicamente.
Com a intenção de provocar e também brincar um pouco, Tiernan entrou no salão do Manu com a sobremesa em forma de pênis e seios em meio a explosão de confetes de corações vermelhos. No seu restaurante em Londres o órgão sexual masculino grafitado no chão pode passar desapercebido, aqui não.
Sorvete, nata, calda de morango e manga, a “Pavlover” estava perfeita e simples como as servidas em almoços de família. Nada casual, foi confeccionada pela Vanessa “Petitfour” Lima, a confeiteira da casa, ao estilo do chef.
Uma das surpresas da noite: noodles de orelha de porco e lula; o susto ficou por conta da pimenta muito forte. Com certeza, se fosse um pouco mais leve a avaliação seria de um prato cinco estrelas, mas, ao que parece, a intenção era mesmo provocar. De acordo com o chef, em sua casa em Londres é muito mais forte.
O pastel do chef recheado com carne de carneiro foi servido com pimenta biquinho e pitanga apimentados na medida, ficaram em infusão com sementes da pimenta dedo-de-moça e vinagre, acompanhado por soda de cumaru, ganharia qualquer concurso. Ele adorou os servidos nas nossas feiras, mas achou que tinham pouco recheio, com razão.
O toque de ouriço em conserva no pão de açaí será inesquecível, apenas dispensaria a purpurina em cima. A mistura de tradição e ousadia é a assinatura do chef.
Hors-concours foi o entrecot selado no molho de soja com tamarindo e temperado depois, acompanhado de salada com molho de tahine, picles e maionese de alho. Pujante, fortemente delicioso.