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Acabar com o marco temporal para demarcação de terras indígenas pode travar o desenvolvimento em quase 500 novas áreas do país, estagnando cerca de 30% do território nacional
Acabar com o marco temporal para demarcação de terras indígenas pode travar o desenvolvimento em quase 500 novas áreas do país, estagnando cerca de 30% do território nacional| Foto: Leopoldo Silva/Agência Senado

A decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) de derrubar o marco temporal para a demarcação de terras indígenas não tem apenas como efeitos a instabilidade jurídica e a possibilidade de desapropriação de milhares de terras produtivas. Com o aumento desnecessário dessas terras, centenas de obras públicas de infraestrutura em todo o país, que beneficiariam os próprios indígenas, deverão ser interrompidas ou adiadas. Esse cenário manterá as aldeias na pobreza, enquanto qualquer melhoria exigirá indenizações milionárias para ONGs (leia mais abaixo), muitas delas sustentadas por megafundações de capital estrangeiro.

Isso significa travar o desenvolvimento em quase 500 novas áreas do país, estagnando cerca de 30% do território nacional.

De acordo com uma ex-funcionária da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai), que preferiu não se identificar, todas as obras necessitam de estudos de impacto ambiental que consideram sua proximidade a aldeias. “Isso costuma travar a obra ou gerar indenizações milionárias que o governo é obrigado a pagar ONGs que representam os índios”, explica, ao citar regras definidas pela Portaria Interministerial 060, de 2015.

Entre essas normas está a distância estabelecida no entorno da terra indígena a fim de garantir a conservação da região. No caso da implantação de ferrovias, portos, mineradoras ou termoelétricas, é considerado que a obra impacta um raio de até 10 km, enquanto obras em rodovias e hidrelétricas, até 40 km.

“Então, imagine a quantidade de territórios e de áreas ao redor que vão travar obras e exigir indenizações milionárias sem o marco temporal”, pontua a especialista, ao afirmar que a tese de que os indígenas têm direito somente às terras que eram ocupadas por eles na data de promulgação da Constituição, em 1988, evitaria essa demarcação excessiva, principalmente diante da imensa quantidade de novas demarcações em análise.

Dados da Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA) apresentados no plenário do Supremo Tribunal Federal (STF) no início deste mês mostraram que há 487 reivindicações de novos territórios indígenas em todo o país aguardando aprovação pela Funai, e que outras 120 áreas estão em estudo para serem reivindicadas, a maioria nas regiões Centro-Oeste, Sul e Sudeste.

No total, essas novas terras equivalem a cerca de 117 milhões de hectares que, somados aos 119 milhões já destinados aos indígenas, chegariam a 27,8% de todo o território brasileiro, segundo o Observatório Jurídico do Agro.

 Há 487 reivindicações de novos territórios indígenas em todo o país aguardando aprovação pela Funai, e outras <strong>120</strong> áreas estão em estudo para serem reivindicadas. Imagem: Observatório Jurídico do Agro
Há 487 reivindicações de novos territórios indígenas em todo o país aguardando aprovação pela Funai, e outras 120 áreas estão em estudo para serem reivindicadas. Imagem: Observatório Jurídico do Agro

No entanto, os 14% do território nacional pertencentes aos índios atualmente já são suficientes para evidenciar como a política indigenista trava obras públicas, gera indenizações volumosas para Organizações não governamentais (ONGs) e interfere nas melhorias de infraestrutura, inclusive, para os próprios índios. “Só pra instalar energia elétrica aqui, temos que enfrentar uma série de burocracias”, afirma a líder indígena Ysani Kalapalo, do Parque Indígena do Xingu, no Mato Grosso.

De acordo com o ex-senador Telmário Mota, natural da comunidade indígena Teso do Gavião, em Roraima, a situação abrange centenas de obras, como construção de pontes em áreas que alagam durante vários meses do ano no Norte do país, pavimentação de estradas de terra em condições precárias e até reforma de escolas.

“A população consegue o investimento, inclusive para beneficiar o próprio índio, mas perde a oportunidade de fazer a obra porque não tem liberação da Funai e dos demais órgãos ambientais”, lamenta o economista e político, ao citar como exemplo a implantação do Linhão de Tucuruí, que demorou 12 anos para sair do papel devido aos pedidos de compensação da Associação Comunidade Waimiri-Atroari (ACWA).

Imagem do Ramal Sissaíma, no município de Careiro da Várzea, no Amazonas, que tem R$ 14 milhões disponível para a pavimentação, mas ainda não obteve licença ambiental para a obra. Foto: arquivo pessoal/Eduardo Barbosa
Imagem do Ramal Sissaíma, no município de Careiro da Várzea, no Amazonas, que tem R$ 14 milhões disponível para a pavimentação, mas ainda não obteve licença ambiental para a obra. Foto: arquivo pessoal/Eduardo Barbosa

Indenização de R$ 90 milhões para liberar o Linhão de Tucuruí

Com o objetivo de interligar as capitais Manaus (AM) e Boa Vista (RR), o Linhão com 715 quilômetros de extensão precisa passar por 125 quilômetros de terras pertencentes aos indígenas. Com isso, a obra licitada em 2011 e com conclusão prevista para 2015 só foi começar este ano, em 2023.

Segundo Mota, o objetivo da instalação das torres de transmissão é integrar Roraima ao sistema elétrico nacional, já que o estado é o único que depende exclusivamente de energia proveniente de termelétricas, opção que encarece a conta de luz de todos os consumidores do país e que não é sustentável, pois depende do consumo de óleo diesel. No entanto, a negação das licenças ambientais pelos órgãos competentes e a briga na Justiça por uma indenização na casa dos R$ 180 milhões travaram a obra.

Apenas dez anos depois da licitação, o governo do ex-presidente Jair Bolsonaro conseguiu aprovação do Plano Básico do Componente Indígena (PBA-CI) pela Funai e também a Licença de Instalação expedida pelo Ibama. Porém, a Justiça suspendeu a ordem de serviço e condicionou a liberação da obra ao pagamento de compensação milionária ao povo Waimiri-Atroari.

A própria Funai solicitou investigação do processo do Linhão

Em maio de 2021, o então presidente da Funai, Marcelo Teixeira, chegou a pedir investigação policial de funcionários da Fundação Nacional dos Povos Indígenas e também de membros da ACWA. No inquérito, o órgão informava que os Waimiri-Atroari e servidores da Funai estariam atuando para colocar “barreiras e entraves” à aprovação do projeto do Linhão.

Em nota de esclarecimento emitida pela Fundação em junho de 2021, o órgão explicou que era necessário investigar possível conflito de interesses no caso, já que existiria dentro da Funai estreita ligação familiar entre uma colaboradora de alto escalão e o fundador da associação que receberia a indenização milionária referente à obra. A mesma funcionária também seria parente de um dos advogados que representou a mesma associação no processo.

“Considerando que houve atuação de servidor da Funai que possui grau familiar próximo, em linha reta e colateral, a pessoas vinculadas à Associação Comunitária Waimiri Atroari (ACWA), incluindo participação na elaboração de documento técnico com sugestão de majoração em mais de 30% do valor da compensação dos impactos negativos não mitigáveis, que seriam pagos pelo empreendedor à ACWA, a apuração dos fatos se mostra essencial para a cabal elucidação do ocorrido”, informou a nota.

A hipótese informada violaria a Lei nº 12.813/2013, que proíbe “praticar ato em benefício de interesse de pessoa jurídica de que participe o agente público, seu cônjuge, companheiro, ou parentes, consanguíneos ou afins, em linha reta ou colateral, até o terceiro grau”. Entretanto, o Ministério Público Federal do Amazonas pediu arquivamento do caso, e até hoje ninguém foi investigado.

As negociações continuaram e a associação chegou a recusar um acordo proposto no valor de R$ 50 milhões. O embate na Justiça continuou, e o valor pago pelo governo foi de R$ 90 milhões, dando início às obras em agosto de 2023.

Outros casos relatados na CPI Funai e Incra, em 2016

Além das indenizações exigidas para que obras como o Linhão de Tucuruí saíssem do papel, o ex-diretor do Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (DNIT), ex-ministro do governo Bolsonaro e atual governador de São Paulo, Tarcísio Freitas, aponta outros “favores” solicitados por representantes dos indígenas durante as obras.

Em seu depoimento na Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) Funai e Incra, realizado na Câmara dos Deputados em 2016, Tarcísio, que também é engenheiro e militar da reserva, relatou condições que eram impostas ao DNIT por representantes indígenas entre 2011 e 2015.

Segundo ele, ordens precisavam ser cumpridas na terra indígena dos Parakanãs, na rodovia Transamazônica (BR-230), por exemplo, para que obras nas estradas fossem concretizadas. “E sempre a posição era: ‘Cumpra-se! Tem que cumprir, tem que atender!’”, relatou, citando que o DNIT chegou a pagar a vigilância de uma aldeia “e que essa vigilância teria que ser feita pelos próprios indígenas”.

No depoimento, Tarcísio explica que os valores eram gerenciados pela Fundação dos Parakanãs, pois essa era a condição “para que a restrição da licença de instalação fosse retirada”. Além disso, ele cita que “na época foram pedidos R$ 1 milhão e pouco de repasse para a fundação” e que pagar o valor solicitado “era muito mais barato do que não fazer a obra”.

Já na BR-163, no Pará, a contrapartida para pavimentação da rodovia foi a abertura de outra estrada com 280 km de extensão entre a rodovia e a aldeia Kayapó. “Uma coisa pitoresca”, caracterizou o ex-diretor do DNIT, já que essa foi a exigência feita pela Funai para reduzir o impacto negativo da rodovia. “Será que isso faz sentido?”, questionou Tarcísio durante a CPI, ao citar ainda que a obra teve aumento de R$ 103 milhões devido aos estudos relacionados à área indígena afetada.

“Aí a gente começa a enxergar alguns interesses por trás disso. E, muitas vezes, os próprios indígenas são vítimas desses interesses, são usados por esses interesses”, continuou o ex-diretor. “De repente essas ONGs [estejam] atuando e agindo junto ao Ministério Público para não deixar que empreendimentos saiam e a gente dê um salto em termos de produtividade. Não sei se isso acontece, mas é uma teoria que pode vir à cabeça”, disse Tarcísio.

“Aí a gente começa a enxergar alguns interesses por trás disso. E, muitas vezes, os próprios indígenas são vítimas desses interesses, são usados por esses interesses”, afirma o ex-diretor do Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (DNIT) e atual governador de São Paulo, Tarcísio Gomes de Freitas .

CPI das Ongs no Senado quer saber de onde vem o dinheiro e para onde vai

Essa e outras teorias envolvendo as Organizações não governamentais que representam os índios têm sido analisadas na CPI das ONGs, onde senadores buscam entender quem financia essas entidades, com quais valores e o que é feito com os montantes. “Sabemos que há entrada de capital estrangeiro, mas que isso não chega nas aldeias”, disse o senador Plínio Valério (PSDB-AM), presidente da CPI.

Então, “o que eles fazem com esse dinheiro? Eles gastam entre eles, e o que nos irrita ainda mais é a forma que essa gente desdenha do brasileiro”, afirmou o congressista na CPI, explicando que o aparente aumento na quantidade de indígenas no país é resultado do extermínio da nação mestiça. “Estão tornando os mestiços em indígenas para ocupar os locais que querem demarcar”.

No entanto, ele garante que essas demarcações não interessam ao índio.O indígena que não é catequisado pelas associações vai dizer que o problema dele não é terra, mas políticas públicas”, pois eles já possuem território equivalente a cerca de 99 campos de futebol para cada um.

Residência do indígena Augusto Duarte, da etnia Mura, do Amazonas. "Vivemos em pobreza". Foto: Arquivo pessoal/Augusto Duarte
Residência do indígena Augusto Duarte, da etnia Mura, do Amazonas. "Vivemos em pobreza". Foto: Arquivo pessoal/Augusto Duarte| Arquivo pessoal/Augusto Duarte

De acordo com o indígena Augusto Duarte, da etnia Mura, do Amazonas, novas terras apenas prejudicam o povo indígena, que está abandonado dentro dessas áreas imensas. “Vivemos em pobreza”, afirma o homem ao mostrar a residência de sua família: um pequeno casebre de madeira e teto de palha. “Não queremos mais terras”, diz.

Assim como ele, a líder indígena Ysani Kalapalo, do Mato Grosso, concorda. Afinal, segundo ela, os indígenas já possuem grandes territórios, mas não têm liberdade para usufruir deles. “Não podemos plantar o que a gente quer” e para “tudo temos que pedir permissão à Funai, Ibama e ONGs”, relata em um vídeo nas redes sociais. “Parece que estamos vivendo dentro de uma prisão verde, é assim que enxergo a terra indígena”, finaliza.

A Gazeta do Povo entrou em contato com a Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai), mas não obteve retorno até a publicação desta reportagem. Outras entidades citadas na reportagem também foram procuradas, e o espaço segue aberto para respostas.

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