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Ministro Alexandre de Moraes em sessão plenária do STF
Ministro Alexandre de Moraes em sessão plenária do STF| Foto: Gustavo Moreno/SCO/STF

O “inquérito das fake news”, instaurado para apurar condutas que “atingem a honorabilidade e a segurança” do STF e de seus ministros, completa cinco anos nesta quinta-feira (14) sem resultados concretos a apresentar.

É a avaliação de André Marsiglia, advogado do portal O Antagonista e da revista Crusoé, que foram alvos de uma das primeiras medidas do inquérito: a ordem de censura sobre uma reportagem envolvendo o ministro Dias Toffoli, que tinha instaurado o procedimento.

Marsiglia informou à reportagem que, cinco anos depois, seus clientes ainda não foram indiciados ou denunciados por qualquer crime: “Até hoje não sabemos a razão de meus clientes, todos jornalistas profissionais, estarem nos inquéritos.” No entanto, ainda permanecem na condição de investigados.

Se depender do relator do inquérito, o ministro Alexandre de Moraes, essa situação não deve mudar tão cedo. Questionado pelo jornal Folha de São Paulo se tinha alguma previsão de “enfim” concluir a investigação, em dezembro de 2023, respondeu: “Ele vai ser concluído quando terminar”.

Demora inusual

A legislação prevê, como regra, prazo de 30 dias para a conclusão de um inquérito. O advogado criminalista Gabriel Duda Deveikis explica que, na prática, pode ocorrer que inquéritos sejam prorrogados e durem anos. No entanto, ressalta, essa situação é mais típica de crimes complexos, como os cometidos na gestão de multinacionais, dando como exemplo a Lava Jato.

Já os crimes de palavra – que correspondem justamente aos investigados pelo inquérito das fake news – são, em regra, segundo o advogado, “simples” em termos investigativos, porque a ação a ser investigada – a fala – se exaure instantaneamente e frequentemente já está documentada.

A rigor, segundo o advogado, pode nem mesmo ser necessário um inquérito. Isso porque a única função do procedimento é colher elementos de convicção – popularmente, “provas” – para instruir a futura peça de acusação, que precisa ser acompanhada de provas robustas para convencer o juiz da culpa do acusado. Se já houver, desde o início, provas suficientes – por exemplo, uma reportagem assinada e publicamente disponível atribuindo fato lesivo à reputação –, pode-se proceder diretamente à ação penal, sem sequer abrir um inquérito.

Sobre o caso citado, reportagem da Gazeta do Povo relembrou que, em abril de 2019, Moraes determinou que a revista Crusoé e o site O Antagonista retirassem do ar, sob pena de multa diária de R$ 100 mil, uma reportagem que revelava que o empresário Marcelo Odebrecht, em sua delação premiada, se referia a Toffoli como “o amigo do amigo do meu pai”. Marcelo narrava tratativas sobre obras de hidrelétricas no Rio Madeira no segundo mandato de Lula, quando Toffoli era advogado-geral da União. Não havia qualquer afirmação de atos ilícitos por parte do ministro.

O processo é a punição

No caso do inquérito das fake news, a justificativa única da existência de qualquer inquérito – instruir a peça de acusação – já tinha sido descartada logo no mês seguinte à abertura. Isso porque, no dia 16/04/2019, a então procuradora-geral da República, Raquel Dodge, a quem caberia eventual oferecimento de ação penal, pediu o arquivamento do procedimento, considerando ilegal a sua instauração e condução e anunciando desde logo que não ofereceria acusação contra nenhum dos investigados, por considerar ilícitas as provas produzidas por aquele procedimento.

A advertência foi ignorada e o inquérito prosseguiu. A juíza aposentada Ludmila Lins Grilo, na obra "O Inquérito do Fim do Mundo" (dedicada ao inquérito, no qual posteriormente viria a ser, ela própria, incluída como investigada), chama esse detalhe de “significativo”: “se de antemão já se sabe que não haverá qualquer ação penal, isso significa que o inquérito está servindo, na prática, a finalidades exclusivamente persecutórias e intimidatórias”, afirmou ela no livro.

Mesmo após o pedido de arquivamento pela PGR, que foi ignorado, medidas cautelares criminais continuaram a ser praticadas no inquérito. Como exemplo, em decisão datada de 1º de agosto de 2019, o ministro Alexandre de Moraes determinou que dois auditores fiscais fossem afastados do cargo e interrogados por “investigar diversos agentes públicos, inclusive [...] ministros do Supremo Tribunal Federal”.

A partir de 2020, o inquérito também se notabilizou por iniciar uma onda de buscas e apreensões e censuras de contas em redes sociais por manifestações políticas. Essas medidas são decretadas como cautelares criminais, providência possível de ser tomada quando há inquérito em andamento.

Ausência de resultados

Não é possível fazer um balanço completo do inquérito das fake news - oficialmente, Inquérito 4.781 -, porque corre em sigilo.

Advogados que atuam no inquérito, contatados pela Gazeta do Povo, relatam que nem eles próprios tiveram acesso à íntegra dos autos e, por isso, não sabem de qual crime seus clientes são acusados ou quais elementos de prova o inquérito conseguiu produzir.

As únicas pistas são fornecidas por peças específicas que são ocasionalmente remetidas a outros autos de investigação para servirem de elementos auxiliares de prova, e por isso passam a ser conhecidas.

Foi dessa forma que emergiu, por exemplo, um relatório de investigação sobre o ex-deputado Roberto Jefferson. Ao longo de 50 páginas, o relatório pericial se limita a fazer uma coletânea de postagens públicas do ex-parlamentar em redes sociais e apresenta como conclusão que “foram localizados ataques de Roberto Jefferson ao Supremo Tribunal Federal e seus integrantes”.

Roberto Jefferson acabou sendo denunciado pela PGR por crimes como homofobia e incitação. No entanto, a denúncia citou publicações diferentes das que constavam naquele relatório e se deu no âmbito de outro procedimento, o de número 4.874, conhecido como “inquérito das milícias digitais”.

Em situação parecida estão o ex-deputado Daniel Silveira, a ativista Sara Winter, o deputado Otoni de Paula e todos os réus dos atos de 8 de janeiro de 2023: foram todos denunciados, mas não no âmbito do inquérito das fake news, e sim em um dos seus chamados “inquéritos-filhos”.

Os “inquéritos-filhos”

Embora até hoje não estejam claros os resultados do inquérito das fake news, ele ainda exerce grande influência no Brasil por ser o elo que justifica que se mantenham nas mãos de um mesmo relator, Alexandre de Moraes, múltiplos inquéritos de grande repercussão:

  • Inquérito 4.874, o “inquérito das milícias digitais”, aberto de ofício por Moraes na mesma decisão que aceitou o pedido da PGR para arquivar o Inquérito 4.828 (“dos atos antidemocráticos”), e destinado a apurar a existência de organização criminosa de atuação digital com a finalidade de “atentar contra a democracia e o Estado de direito”; 
  • Inquérito 4.878, aberto a pedido do TSE e destinado a apurar o vazamento, por Bolsonaro, de dados sigilosos de uma investigação da Polícia Federal sobre uma invasão hacker ao sistema do TSE;
  • Inquérito 4.879, aberto a pedido da PGR e destinado a investigar uma greve de caminhoneiros que apoiavam Bolsonaro convocada às vésperas de 7 de setembro de 2021;
  • Inquérito 4.888, aberto a pedido da CPI da Covid contra Bolsonaro para investigar falas do então presidente da República sobre vacinas;
  • Inquéritos 4.917, 4.918, 4.919, 4.920, 4.921, 4.922, e 4.923, abertos para investigar a responsabilidade pelos atos de depredação em Brasília em 8 de janeiro de 2023;
  • Inquérito 4.933, aberto a pedido da PGR para investigar os administradores do Google Brasil e Telegram Brasil por fazerem campanha contra a aprovação do PL 2.630 (“PL das Fake News”).

Inquérito das fake news: o elo da cadeia

Apesar da diversidade dos assuntos investigados, todos estão sob a relatoria do ministro Alexandre de Moraes por prevenção. Isso significa que não passaram por sorteio (método usual para determinar o juiz de uma causa e normalmente exigido para o processo ser considerado válido), mas, em vez disso, foram atribuídos diretamente a Moraes.

Em todos os casos, a alegação é de que seriam casos conexos com inquéritos sob a relatoria do ministro; ou o inquérito das fake news diretamente, ou outro inquérito que, em última análise, deriva dele, porque também foi distribuído por conexão.

Assim, o inquérito das fake news funcionaria como um tronco de árvore do qual dependem múltiplos galhos. Em nenhuma etapa da cadeia houve sorteio, uma vez que o inquérito original foi atribuído a Moraes por escolha pessoal do ministro Dias Toffoli, em ato que, à época, gerou controvérsia entre juristas.

Segundo o advogado criminalista Gabriel Duda Deveikis, o que se entende na prática processual é que, se um inquérito principal for arquivado, o natural é que os inquéritos derivados também o sejam. A explicação é que a conexão entre inquéritos presume que estejam intimamente associados: “se há conexão para juntar, para arquivar também há”.

No caso do inquérito das fake news, alguns dos investigados, ouvidos pela Gazeta do Povo sob condição de anonimato, relataram que, nos cinco anos desde que foram incluídos no inquérito por falas contra ministros do STF, jamais foi realizada com eles qualquer diligência própria de um inquérito, como interrogatórios.

Apesar disso, o inquérito não é arquivado e continua a ser citado para fundamentar a atuação do relator nos mais variados casos, dentre os quais o que investiga o ex-presidente por joias do acervo presidencial e até diretores de empresas de tecnologia se manifestando contra projetos de lei.

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