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“Somos invisíveis.” A frase, embora dita em uníssono, carrega vários sotaques diferentes. São estudantes oriundos de São Paulo, Santa Catarina e mesmo do Rio de Janeiro, que conseguiram uma vaga na universidade pública, mas, agora, lutam para permanecer nela. A mais de mil quilômetros de casa, a catarinense Letícia Martins divide com mais duas amigas um quarto que mede 2 x 5 metros no alojamento da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). O espaço, que deveria abrigar apenas uma pessoa e ter ares acolhedores, espreme em seu interior uma bicama, uma rede, um armário e uma mesa.

Também longe do lar, o paulista de Santa Bárbara D’Oeste Jackson Yamanaka ocupou o que deveria ser uma das cozinhas do alojamento estudantil. Sem teto, o estudante distribui seus pertences e um colchão inflável na área ociosa. No mesmo campus, um estudante de Química vive de maneira clandestina em um dos prédios da instituição. Primeiro, fez de cama o corredor do sétimo andar do edifício onde estuda; depois, por temer ser descoberto, passou a dormir nos entrepisos, junto a material de manutenção e caixas de energia do prédio. Agora, por último, recorreu a um dos laboratórios para dormir.

A situação é compartilhada por estudantes de diversos estados, que ingressaram na UFRJ por meio do Sistema de Seleção Unificada (Sisu) e da política de cotas, mas não conseguem obter excelência em seus estudos por causa da falta de assistência estudantil.

“Eu me interessei pelas universidades que abriram pelo Sisu, e a UFRJ foi uma delas. Ela me chamou atenção por ser a maior federal do país, então, acreditei que teria o mínimo de assistência. Ainda mais que abriram o sistema para estudantes de todo o Brasil e também aderiram às cotas. O que se esperava era o mínimo de suporte para a permanência de quem conseguiu acesso”, conta Jackson, estudante de Ciências Sociais.“Para eles, a gente realmente não existe”.

Pão duro e café

O estudante diz que a situação é ainda pior para os alunos que têm aulas em outros campus fora da Ilha do Fundão e, assim como ele, fazem sua única refeição no alojamento (devido à ausência de bandejões em outros polos da federal). O café da manhã e o lanche da tarde oferecidos na moradia estudantil — que deveriam trazer itens como iogurte, peito de peru e frutas, segundo edital de licitação de gêneros alimentícios feito em 2012 — se limitam a café preto e pão puro.

Segundo dados da UFRJ, do total de cerca de 50 mil alunos da instituição, o índice dos que são de fora do estado saltou de 1%, em 2010, para 22%, este ano. Em relação às vagas, cerca de 25% delas em todos os cursos são reservadas a estudantes com o perfil socioeconômico de Letícia: renda familiar per capita de até 1,5 salário mínimo e concluinte do ensino médio em escola pública. Embora tenha conseguido entrar na faculdade duas outras vezes, na Universidade Federal de Goiás (UFG) e na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), a menina nunca conseguiu concluir os cursos por falta de condições financeiras para se manter.

“Já que lá (na UFSC) não teria como permanecer, eu vim para cá. No site da UFRJ, parecia tudo lindo. Já apareceu rato e pombo dentro do quarto”, afirma Letícia, aluna da Escola de Belas Artes. “É a terceira faculdade que tento fazer. Nunca consegui concluir um curso por falta de assistência estudantil. Desta vez, não vou desistir. Cheguei a pensar em ir para a UFMG, mas vou ficar, lutar por esse direito e contribuir com os próximos alunos”, diz.

Laboratório vira dormitório

Com ocupação máxima, a moradia estudantil consegue abrigar 504 alunos. Hoje, por causa da reforma do módulo feminino, há oficialmente 250 alunos moradores. No entanto, por conta dos que agregam outros em seus quartos, o Diretório Central dos Estudantes (DCE) pede que a reitoria faça um censo para identificar o número real de residentes. O complexo habitacional em fase de construção seria uma opção, mas, assim como a reforma dos alojamentos existentes, a obra está atrasada. A universidade alega que o atraso ocorreu devido à necessidade de fazer aditivos ao contrato. Segundo a instituição, o módulo feminino deve ficar pronto “em meados do próximo semestre”. A verba prevista para a reforma e a construção do prédio é de R$ 8 milhões.

Enquanto isso não acontece, o aluno de Química continua a peregrinação pelos andares do instituto. Na casa dos 20 anos, para não largar o curso, o estudante, além de dormir no chão todos os dias, já passou fome. “Comecei a ficar pelo Centro de Tecnologia (CT), porque era mais barato. Eu não incomodava ninguém e acabou sendo mais prático e seguro. Eu dormia sentado e me escondia dos seguranças. Estou aqui para estudar, senão não estava passando por tudo isso, era mais fácil estar na cidade dos meus pais. Todos os dias, eu penso em desistir, mas fico porque é o que gosto de fazer”, conta.

Especialista em educação superior, o professor da Unicamp Leandro Tessler avalia que as universidades não se adaptaram à expansão. “Muitas universidades investem muito pouco na recepção e na assistência estudantil. Existe uma lógica de que, se é público, pode ser precário. A universidade deixou de ser um ambiente só da elite, mas não se adaptou para ser um espaço de todos”, avalia.

A UFRJ afirmou que a universidade não tem “como atender aos cerca de 1.450 alunos de outros municípios e estados que se enquadram no perfil do auxílio moradia”. Sobre a insalubridade do alojamento, a UFRJ afirmou que “a reitoria considera um problema pontual na Residência Estudantil” e que já adotou as providências sanitárias necessárias.

O Ministério da Educação (MEC) afirmou que os investimentos para assistência estudantil nas instituições de ensino superior saltaram de R$ 101 milhões, em 2008, para R$ 895 milhões, em 2015. A União Nacional dos Estudantes (UNE) considera o valor insuficiente e vai cobrar que os recursos nacionais cheguem a R$ 2,5 bilhões. Na UFRJ, o valor da verba do Programa Nacional de Assistência Estudantil (PNAES) foi de R$ 45 milhões neste ano.

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