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Em A era dos extremos, o historiador Eric Hobsbawm lembra aquele detalhe óbvio que só se percebe a distância – a geração contestatória de 68 ("é proibido proibir") foi filha da geração que presenciou o maior período de enriquecimento progressivo e bem-estar da humanidade, os 30 anos que se seguiram à Segunda Grande Guerra. Isso foi evidente nos países ocidentais ricos, mas com reflexos notáveis na periferia do mundo civilizado, como no Brasil. A pergunta retórica que Hobsbawn faz é por que aquele "jovem" – essa invenção do século 20 – era de esquerda e contestador, e não de direita e conservador; se observasse os seus pais, veria que entre 1950 e 1970 a vida destes melhorara dramaticamente. Olho para minha própria história e percebo como isso de fato aconteceu. Criança, filho de um pai que se alfabetizou adulto e se tornou advogado, fui testemunha ocular do primeiro fogão a gás e da primeira geladeira que entraram em casa. O radinho a pilha, Hitachi, passava de mão em mão como um santo graal. Vi a televisão chegar a Curitiba, ao vivo e em preto e branco; depois apareceu o videoteipe; e hoje escrevo nesse iMac de estimação, quando o extraordinário não é mais o aparelho, mas o que posso encontrar nele. Não só isso – em 30 anos a conquista das liberdades individuais, na vida familiar e social, deu um salto inimaginável em séculos e séculos anteriores, a ponto de criar um ser chamado "indivíduo", com mais direitos e menos deveres do que um rei teria nos velhos tempos.

Na sala de aula, tive o privilégio de ler diálogos de Platão para trabalhos escolares no ensino médio do Colégio Estadual, no momento de melhor qualidade da escola que o Brasil jamais viveu. Antes que se repita o bordão preguiçoso de que "naquele tempo que era bom", lembremos que essa era uma regalia de uma faixa muito estreita da população. Quando o ensino básico começou de fato a se universalizar (menos pela vontade política e mais pela inevitável urbanização que se seguiu à derrocada do campo sob o avanço industrial), o país nem de longe teria condições de manter o padrão para todos. E os abalos sísmicos da urbanização feroz, fim último do século 20, vão deixando cicatrizes violentas por onde ela passa.

O atual mantra brasileiro é o vestibular unificado do Enem. O velho processo se repete, agora no terceiro grau. Se é para ter universidade para todos, que se espere o que já está acontecendo – um imenso terceirão, talvez em pouco tempo o maior do mundo, na escala sempre superlativa do Brasil. O sonho romântico de "indissolubilidade entre ensino, pesquisa e extensão", o cidadão integral da "cidade do sol" autista sonhada pela estatal das federais brasileiras, a reza que alimentou espiritualmente greves, sindicatos e professores universitários da minha geração, já são apenas uma memória burocrática diante do rolo massificante dos novos tempos.

Cristovão Tezza é escritor.

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