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O governador Tarcísio de Freitas durante a solenidade alusiva ao 91° aniversário da Revolução de Constitucionalista de 1932.
O governador Tarcísio de Freitas durante a solenidade alusiva ao 91.° aniversário da Revolução Constitucionalista de 1932.| Foto: Fernando Nascimento/Governo do Estado de São Paulo

“Ai de vocês, mestres da lei e fariseus, hipócritas! Vocês são como sepulcros caiados: bonitos por fora, mas por dentro estão cheios de ossos e de todo tipo de imundície.” (Mateus, 23,27)

Circulou por esses dias nas redes sociais uma fala de Tarcísio de Freitas, governador de São Paulo, no 11.º Fórum Jurídico de Lisboa, evento organizado pelo ministro do STF Gilmar Mendes, e que, por causa de seus muitos eventos sociais paralelos, nos quais a elite política e empresarial brasileira se acerta e harmoniza, foi apelidado de “GilmarFest” ou “Gilmarpalooza”. Estrela do Republicanos, nome forte junto ao eleitorado de direita, e até então muito bem cotado para ser um possível sucessor político de Jair Bolsonaro, de quem foi dos mais destacados ministros, Tarcísio iniciou sua fala no evento fazendo acenos para o campo político oposto, que hoje nem sequer se dá ao trabalho de esconder a sua missão (dada e cumprida) de “derrotar o bolsonarismo”.

A propósito, Luís Roberto Barroso, o ministro da suprema corte autor da confissão de partidarismo acima citada, e também de que o Judiciário virou mesmo um poder político, estava presente à fala de Tarcísio. Como também estavam presentes Luís Felipe Salomão (do STJ) e Flávio Dino, o comunista à frente da pasta de Justiça e Segurança Pública. O governador de São Paulo iniciou sua fala dizendo não entender por que havia sido convidado, já que era um mero engenheiro “no meio de juristas renomados”, dentre os quais citou nominal e elogiosamente Barroso, Salomão e Gilmar Mendes.

Tarcísio de Freitas pode não saber por que foi convidado para o Gilmarpalooza, mas Gilmar, Barroso, Salomão e Dino sabem por que o convidaram: para que se possa reeditar a nova versão nacional do velho “teatro das tesouras”

Após os afagos, o ilustre convidado do Gilmarpalooza – o tipo de evento de celebração da democracia no qual o “demos” não passa nem perto – faz menção ao que muitos no Brasil contemporâneo têm apontado como um possível “risco ao Estado Democrático de Direito”. Negando a existência desse risco, Tarcísio já embarcava antecipadamente no marketing político do STF, segundo o qual, apesar da tentativa de golpe supostamente ocorrida em 8 de janeiro, a nossa democracia permanece inabalada. “A democracia brasileira é forte, é vibrante e está revigorada, e a gente não tem grandes riscos” – disse o governador. “Nós estamos caminhando na direção certa, pois ele tem o fundamento na soberania popular. Fundamental é a existência de um órgão guardião da Constituição, com vontade livre, com atuação livre, e isso nós temos, então esse risco é baixo. Nós temos esse guardião, e ele tem funcionado ultimamente. Temos uma democracia sólida, temos uma democracia que vai garantir para as próximas gerações um Estado mais harmônico, mais justo e com mais prosperidade”.

Não pretendo entrar no mérito sobre o juízo de Tarcísio a respeito de nossa “vibrante” – outros já disseram “pujante” – democracia. Mas não posso deixar de registrar que, dias depois da circulação do vídeo no qual a pretensa nova liderança política da direita brasileira pintava esse cenário idílico de nosso Estado Excepcionalíssimo de Direito, a jornalista Karina Michelin divulgou uma carta por ela recebida, redigida diretamente de uma cela da Papuda por um dos encarcerados no 8 de janeiro. No documento, o preso relata as muitas violações de direitos humanos a que estão sendo submetidos os presos políticos de Lula e Alexandre de Moraes, tanto na Papuda quanto na Colmeia (o presídio feminino): convivência com presos comuns (dentre traficantes, homicidas e estupradores), celas superlotadas, apenas uma hora de banho de sol por dia (e nem todos os dias), alimentação insalubre, subnutrição, depressão e outros problemas psicológicos, pensamentos suicidas, restrição de acesso aos advogados.

“Aqui no bloco 6 da Papuda, na penitenciária feminina, tem uma patriota com câncer nos seios” – diz a carta. “Ela já tinha perdido um seio, agora perdeu o outro. A patriota não consegue mais andar, não consegue mais fazer nada, perdeu as forças e a vontade de viver. Tem outra patriota cujo marido também está preso... Eles têm três filhos, um de 2, uma de 3 e outro de 6 anos. A avó está sofrendo para cuidar das três crianças porque não tem recurso algum. Tem também uma patriota que acaba de perder a mãe e nem ao velório pôde ir”. Recorde-se que não houve julgamento, e os presos nem sequer sabem por que estão ali, uma vez que as condutas não foram individualizadas. De resto, as prisões preventivas são ilegais (ver, a propósito, esta entrevista do jornalista Paulo Figueiredo com um dos advogados dos presos). Eis a nossa democracia para lá de “vibrante”. Uma “democracia até demais”, como diria Lula acerca da Venezuela chavista.

Mas, independentemente de sua fala indecorosa sobre democracia, gostaria de explicar o porquê do convite recebido por Tarcísio para o Gilmarpalooza. O governador pode não saber por que foi convidado, mas Gilmar, Barroso, Salomão, Dino e demais representantes do nosso establishment político sabem por que o convidaram. Ora, Tarcísio de Freitas foi convidado para que se possa reeditar a nova versão nacional do velho “teatro das tesouras”, no qual uma “direita” permitida – ou “civilizada”, como quer o Estadão – finge disputar o poder com a extrema-esquerda dominante e hegemônica. A essa direita “moderada” (e só ela precisa do qualificativo, já que a esquerda é a moderação encarnada) cabe se comportar, apresentando apenas divergências pontuais de forma, sem jamais enfrentar o comunopetismo no campo da ideologia e dos valores, algo que apenas a direita “selvagem”, aquela da “ala ideológica” (de triste memória), teve a indelicadeza de fazer. A essa direita distinta, tão civilizada a ponto de entrar na cozinha com o adversário, cabe, no momento exato, reproduzir ipsis litteris a narrativa da esquerda, e tecer loas aos mesmos que esta define como heróis e bons moços. A ela, cabe definir os limites do que é uma direita “aceitável”, e semear esperança sempre que a agenda dessa direita se distinguir menos e menos da esquerda, a ponto de, substituindo-se a mortadela pelo presunto de parma, não ser mais possível diferenciar entre um representante dessa “direita” e um petista.

Assim era antes de 2018, e antes de Bolsonaro, quando o “teatro das tesouras” reinava soberano. Naquela época, tínhamos uma democracia claudicante e disfuncional, cujos mecanismos formais, no papel tão virtuosos, não garantiam um exercício pleno da representatividade. Na política partidária, tínhamos a divisão do poder entre PSDB e PT, dois partidos ideologicamente de esquerda (um social-democrata e um socialista), com a mesma origem intelectual e, exceto por divergências pontuais referentes à política econômica, a mesma visão progressista de mundo. Por muitos anos, o eleitorado de direita foi obrigado a votar nos tucanos, cuja oposição tímida ao PT se fez sempre acompanhar da recusa veemente ao rótulo de “direita” que o campo lulopetista lhes outorgava. “Para a direita não adianta me empurrar que eu não vou” – foi a declaração-síntese desse espírito, proferida por Aécio Neves no pleito de 2014 (o que não impediu, é claro, que também ele e seus eleitores fossem chamados de “fascistas”).

À democracia brasileira pouco importa ser honesta, decente, justa, representativa. Basta parecer exuberante, inabalada e toda pimpona, para causar em convescotes como o Gilmarpalooza

Em 2010, quando sua sucessora Dilma Rousseff enfrentou o tucano José Serra, Lula já havia admitido e celebrado essa disputa política teatral, inexistente nas principais democracias do mundo. “Não vamos ter um candidato de direita na campanha. Não é fantástico isso?” Eis uma concepção farsesca de democracia que não chega a surpreender, vinda de quem, em 2 de outubro de 2002, na iminência de sua primeira eleição presidencial, já havia confessado ao jornal francês Le Monde que “a eleição é uma farsa pela qual é preciso passar para se chegar ao poder”. José Serra era a oposição permitida por Lula e por todo o aparato petista de hegemonia, assim como Tarcísio está em vias de se tornar.

Jair Bolsonaro foi, desde sempre, representante de uma direita não permitida no país. Já era assim em 2018, quando o establishment midiático e político o retratava como uma presença estranha, alienígena, alheia à nossa democracia. E foi assim em 2022, quando esse mesmo establishment, decidido a não cometer o mesmo erro do pleito anterior, começou a trabalhar na narrativa, que justificaria toda a atuação militante e parcial das autoridades eleitorais, segundo a qual uma eventual reeleição de Bolsonaro representava a antidemocracia e, portanto, sua derrota era um imperativo, inobstante o que o eleitorado pensasse do assunto. A vitória do candidato petista, retirado às pressas da cadeia para “salvar a democracia”, não era mais uma questão de se, mas de quando.

Com Bolsonaro fora do jogo, e o assim chamado “bolsonarismo” indo todo para o cárcere, é preciso reformular o teatro, escalar novos antagonistas para a trama, e embelezar o palco da democracia inabalada. Entramos na era do pós-bolsonarismo, e, congraçando-se com a elite filopetista, Tarcísio de Freitas – capaz de perder o sono se confundido com a “direita selvagem” – passa a ser tido por um nome promissor, capaz de bem atuar como escada para os futuros heróis do povo. Obviamente, como aliás já se admitiu, não se trata de ganhar eleições, mas de tomar (e manter) o poder. Já passamos dessa fase, todos sabemos. Ainda assim, as aparências importam. À mulher de Cesar não bastava ser honesta, mas parecer honesta. Quanto menos se é, aliás, mais parecer se precisa. E assim é que, na verdade, à democracia brasileira pouco importa ser honesta, decente, justa, representativa. Basta parecer exuberante, inabalada e toda pimpona, para causar em convescotes como o Gilmarpalooza, eventos nos quais, embora sejam definidos, acordados e celebrados os termos da nossa democracia, o “demos” não passa nem na porta...

Conteúdo editado por:Marcio Antonio Campos
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