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“A Criação dos Animais”, de Jacopo Tintoretto.
“A Criação dos Animais”, de Jacopo Tintoretto.| Foto: Wikimedia Commons/Domínio público

Duas semanas atrás, quando o Tubo de Ensaio voltou do recesso de verão, agora como coluna quinzenal, o leitor Lino Porto comentou a entrevista do padre Georges Lemaître com uma ótima pergunta:

“Se Deus não foi o autor do peteleco inicial (o Big Bang), então o Universo segue à revelia Dele? Deus ficou só assistindo da arquibancada? Afinal, qual o papel Dele no processo (se é que houve autoria)? E se não houve ‘autoria’, ou se Deus nada tem a ver com o peteleco, então posso deduzir que...”

Como Deus se relaciona com o universo que Ele criou é uma das questões mais fundamentais para quem se interessa ou participa do diálogo entre ciência e fé. Inúmeras cabeças brilhantes já se debruçaram sobre esse tema, muitas delas antes mesmo de haver algo minimamente parecido com o debate moderno sobre ciência e religião. Então, o que vou apresentar aqui é um mínimo do mínimo, um ponto de partida, que descreve em poucas palavras o meu entendimento, bastante insuficiente, creio eu, dessa relação entre Criador e criação.

De cara, posso dizer que Deus certamente não “ficou só assistindo da arquibancada” depois de ter criado o universo. Essa é a posição deísta, que ficou popular durante o Iluminismo e propõe uma divindade criadora, mas que se afasta completamente da sua criação; para os deístas, Deus fez as leis da natureza, botou o universo para funcionar e se retirou. Consequentemente, eles rejeitam qualquer possibilidade de revelação divina, de milagres, da ação da Providência, o que for. Não sou deísta; pelo contrário, creio em um Deus pessoal, que nos ama e se interessa pelas suas criaturas, que se revelou à humanidade, que continua agindo seja diretamente, por meio dos milagres – e neste fim de semana estamos exatamente a meia distância entre a festa da Anunciação, em 25 de março, quando Deus se fez homem; e o Tríduo Pascal, em que recordamos a morte redentora e celebramos a ressurreição desse Deus feito homem –, seja por meio da Providência, pela qual Deus mostra seu afeto por nós.

Isso não implica, nem exige que Deus tenha de ficar interferindo nos processos da natureza, seja o Big Bang, seja a evolução das espécies, o que for. Esses são processos pelos quais Deus cria (ou seja, segue agindo, sem se afastar da criação), mas o faz usando o que ficou conhecido como “causas segundas”; como li em algum lugar, e infelizmente não lembro onde, Deus fez um universo capaz de fazer a si mesmo, e alguém reparou que no relato bíblico da criação as plantas e animais surgem quando Deus manda a terra produzi-los (Gn 1,11 e 1,24). Os processos naturais são manifestações da criatividade divina. As estrelas se formam, as espécies vivas se desenvolvem não à revelia de Deus, mas porque Ele assim determinou que pudesse ocorrer, embora não da forma completamente direta como poderíamos imaginar. Na verdade, indo mais além, o universo todo só continua existindo porque Deus assim o quer.

Completo essa pequena reflexão com o que alguns entrevistados me disseram sobre o tema ao longo desses anos. O padre George Coyne, diretor do Observatório Vaticano falecido em 2020, me deu uma entrevista em 2009, e aqui vão duas perguntas e respostas:

Se Deus não é necessário para explicar pontos-chave da história do universo, como o surgimento da vida, o que sobra para Ele fazer no mundo?

Para quem crê em Deus e no fato de que Ele criou o universo, segue-se que Deus continua lidando com a criação, sustentando-a sem interferir nos processos naturais que Ele mesmo designou. Deus é amor, e só isso já é um trabalho em tempo integral. Se você é capaz de entender como dois amantes sustentam um ao outro, é possível começar a compreender como Deus sustenta o universo. Um teólogo poderia aprofundar esta questão, mas minha formação é outra.

As pessoas religiosas acreditam em milagres e na Providência divina, que seriam meios de Deus agir no mundo. Como conciliar essa crença com a visão de um Deus não interferente?

De fato, Deus opera milagres, dos quais o maior é a ressurreição de Cristo. Então ele interfere no mundo, e também é providente, mas principalmente por meio da própria natureza. Na minha opinião, essas intervenções são muito raras, e compete a Ele, não a nós, decidir quando a Providência age.

O teólogo William Carroll, com quem conversei em 2017 e que é especialista no pensamento de São Tomás de Aquino, ofereceu uma perspectiva um pouco diferente, mas que rejeita com a mesma veemência a noção deísta.

Existe a ideia de que Deus não só cria, mas “sustenta” o universo com Sua vontade.

Tomás de Aquino negaria essa distinção entre “criação” e “manutenção”. Ele não diz que Deus cria e depois, de certa forma, sustenta o universo. Essa é uma visão que São Boaventura e vários outros defendem. Fala-se de creatio ex nihilo (“criação a partir do nada”) e creatio continua (“criação contínua”). Para Tomás de Aquino, o ato criador é tudo o que Deus faz: Ele faz as coisas existirem de uma forma que elas tenham sua própria autonomia. É uma “autonomia causada”, mas que não tende à autodestruição e por isso exigiria de Deus um ato especial chamado de “conservação”. Isso é importante: quando Tomás diz que Deus não precisa conservar nada, é porque o ato criador já é suficiente pois, para Tomás, isso inclui a ideia de que a ordem natural tem uma integridade própria, uma tendência inata a se manter existindo, seus próprios “poderes causais”, entendidos como o poder de ser a causa de outras coisas.

Veja como isso é importante para o desenvolvimento da ciência: é uma visão da natureza que defende o papel das ciências naturais como investigadoras e descobridoras das relações de causa e efeito existentes no mundo natural, pois a ordem criada tem essa autonomia, tem os seus princípios, seus poderes causais – poderes esses criados, no entanto, por Deus. Parece estranho: como algo pode ser, ao mesmo tempo, próprio e criado por Deus? Acontece que o modo como Deus é a causa do universo é muito diferente de qualquer outra relação de causa e efeito.

Por fim, um dos sucessores de Coyne à frente do Observatório Vaticano, o irmão Guy Consolmagno, deu uma resposta um pouco mais extensa a essa pergunta.

E como Deus age no universo? Podemos conciliar a ideia de leis fixas do universo com um Deus que se preocupa conosco, que responde orações, que realiza milagres?

Bom, aquele workshop [Consolmagno se referia a um encontro realizado décadas atrás] rendeu sete livros densos, então explicar vai ser meio complicado e talvez eu não faça justiça ao trabalho que saiu dali. Mas vou mostrar algumas formas pelas quais Deus claramente age no universo.

Como seres humanos, somos pessoas com livre arbítrio. Estamos em um universo limitado pelas leis naturais, mas podemos escolher agir ou não agir dentro dessas leis. Eu posso escolher me jogar do telhado, e a lei da gravidade vai fazer o resto. Mas também posso escolher não pular; essa escolha não viola lei alguma. Então, se Deus inspira qualquer um de nós a agir de uma forma que mude o mundo à nossa volta, tornamo-nos Seus agentes livres fazendo com que Sua vontade se realize (e não adianta argumentar com quem negue o livre arbítrio, já que, se eles estão certos, não há como nenhum dos debatedores fazer o outro mudar de opinião). O exemplo mais espetacular, evidentemente, é a Encarnação, em que o próprio Deus se faz um desses indivíduos com livre arbítrio e o poder de mudar o mundo – o que Ele fez.

Há “coincidências divinas”. Por exemplo, alguns estudiosos da Bíblia perceberam que pode acontecer uma combinação muito incomum de maré baixa e ventos fortes que façam uma parte do Mar Vermelho secar. Mas o fato de que esse evento perfeitamente natural tenha ocorrido no exato momento em que Moisés precisava dele é certamente um milagre! E nem precisamos pensar nesse tipo de coincidência espetacular. Todos nós recordamos momentos de nossas vidas em que uma coincidência feliz fez toda a diferença. Coincidências existem; o fato de que elas venham pro bem é o que as faz especiais. De qualquer modo, lembremos que “milagres” não precisam ser uma violação das leis naturais; as pessoas reconheciam milagres muito antes de perceber a existência das leis naturais. Um milagre é um evento surpreendente que nos lembra da presença de Deus.

Também há o fato de que o universo é muito maior que átomos e forças. A ciência por trás das substâncias químicas na tinta pode explicar as cores dos pigmentos, mas não explicam por que as cores, organizadas de determinada maneira, resultam na Mona Lisa, com toda a sua história e beleza. Deus age ao encher esse universo com aspectos transcendentais como beleza e amor.

Essas são apenas especulações, não quero esgotar o tema; só dei esses exemplos para mostrar que, mesmo dentro de uma moldura materialista, podemos ver que Deus tem muitos modos de agir.

Se o leitor se interessa pelo tema, posso também mencionar dois livros que ainda não li, mas cujos autores eu considero excelentes: Science and Providence: God’s interaction with the world, de John Polkinghorne; e Providence and Science in a World of Contingency: Thomas Aquinas’ Metaphysics of Divine Action, de Ignacio Silva.

Ponha na agenda: eventos de ciência e fé no Brasil e na Argentina

Ainda estão abertas as inscrições para o Conupes, o congresso internacional do Núcleo de Pesquisa em Espiritualidade e Saúde da Universidade Federal de Juiz de Fora, que ocorre na cidade mineira em 26 e 27 de maio. O principal convidado do evento é o médico Christopher Kerr, que lidera uma equipe de pesquisa sobre experiências de fim de vida em pacientes de cuidados paliativos no Hospice & Palliative Care, em Buffalo, estado de Nova York. Ele estará em uma mesa-redonda com o tema “Terminalidade” e dará uma palestra sobre “Validando sonhos e visões no morrer”.

E os interessados em apresentar papers no XI Congresso Latino-Americano de Ciência e Religião ganharam uma sobrevida: podem mandar seus resumos até 2 de maio. O evento ocorre de 27 a 29 de setembro na Universidade Católica de Salta (norte da Argentina). A programação já saiu e inclui observação astronômica e visita ao Museu de Arqueologia de Alta Montanha, uma das principais atrações turísticas de Salta.

Livro que reúne entrevistas do Tubo de Ensaio ainda está em pré-venda

Se você gostou dos excertos de entrevistas que mencionei nesta coluna, não perca a chance de comprar, em pré-venda com desconto, um livro que reúne as entrevistas feitas ao longo dos quase 15 anos do Tubo de Ensaio. Além de George Coyne, William Carroll e Guy Consolmagno, A razão diante do mistério da existência ainda tem outras duas dezenas de entrevistados, incluindo Marcelo Gleiser, o cardeal Gianfranco Ravasi e William Lane Craig. A promoção termina na quarta-feira, dia 5: use o cupom NOETIKA30 para conseguir um preço camarada e garantir seu exemplar; o livro deve sair das gráficas em meados de maio.

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